DOI: http://dx.doi.org/10.18623/rvd.v14i28.1052
PRIORIDADE LEGAL DO ABASTECIMENTO PÚBLICO E
GERAÇÃO HIDRELÉTRICA
LEGAL
PRIORITY OF PUBLIC WATER SUPPLY AND ELECTRICITY GENERATION
Carlos Ari Sundfeld
Doutor e Mestre
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Professor Titular
da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP).
Presidente da
Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
E-mail:
carlos@sundfeld.adv.br
RESUMO
O
artigo trata da convivência entre as outorgas de direito ao uso da água para a
geração de energia hidrelétrica, que envolve competências de mais de uma
autoridade federal, e as outorgas posteriores para o abastecimento público, que
podem envolver também competências
estaduais e municipais. O tema se insere na discussão sobre qual deve ser a
transição jurídica adequada em face de novas demandas regulatórias; estas geram
dúvidas quanto à estabilidade ou à revogabilidade dos direitos anteriormente
constituídos por atos ou contratos administrativos e quanto ao dever de indenizar
os prejuízos sofridos pelos titulares dos direitos restringidos. A solução da
legislação brasileira vigente foi, por um lado, garantir prioridade ao
abastecimento público, e, por outro, permitir a indenização dos prejuízos do
titular da outorga mais antiga. Como conclusão, o artigo cogita da conveniência
de editar norma nacional que imponha o dever geral de, em face de novas
demandas regulatórias, definir de modo mais específico o regime jurídico
adequado para a transição.
PALAVRAS-CHAVE
Regulação.
Lei Nacional de Recursos Hídricos.
ABSTRACT
The article approaches the coexistence of two types of
administrative authorizations. The first one concerns the use of water for
electricity generation purposes and its expedition involves multiple federal entities.
The second one grants to its beneficiary the right to
explore water supply services and its expedition might also involve states and
counties. In the case studied, the authorization for electricity generation
preceded the authorization for water supply, causing a problem of legal
transition for constituted rights due to new regulatory demands. These demands
raise doubts about the stability and revocability of rights previously
constituted by administrative acts or contracts. Brazil´s legal order sets
water supply as a priority and allows an indemnification for losses endured by
the beneficiary of the older authorization. Nevertheless, the article concludes
that a norm that ensures a general obligation of establishing a proper
transition regime in cases of new regulatory demands would be convenient.
KEYWORDS
Regulation.
Hydric Resources National Statute.
INTRODUÇÃO
Um dos mais complexos desafios jurídicos
derivados da regulação é o de, após a constituição de situações jurídicas
ativas por atos ou contratos administrativos (concessões, autorizações e
licenças, por exemplo), compatibilizá-los com outras regulações setoriais
incidentes sobre a mesma atividade ou com programas decorrentes de normas ou
atos posteriores. Como fazer os direitos já constituídos conviverem com as
constantes demandas regulatórias?
Dada a variedade das soluções jurídicas
construídas pelo Direito para viabilizar a regulação, não existe, obviamente,
resposta geral ou principiológica para essa pergunta.
Normas constitucionais e legais específicas, de resto em constante construção e
mutação, é que procuram compor as situações por meio de arranjos que nem sempre
são completos ou claros.
A desapropriação,
com indenização prévia, justa e em dinheiro, e com o devido
processo legal, prevista na Constituição da República Federativa o
Brasil de 1988/CR/88 (art. 5º, XXIV), é um desses arranjos, cuja aplicabilidade
está consolidada em relação a direitos imobiliários. A encampação
das concessões de serviço público, também com indenização prévia (Lei Federal n.
8.987, de 1995, art. 37), é outro arranjo conhecido. Um arranjo mais específico
é o decaimento das autorizações de
telecomunicações, com o direito do autorizado de manter suas atividades por
mais cinco anos (Lei Federal n. 9.472, de 1997, art. 141).
Esses são exemplos de arranjos
explícitos e relativamente bem delineados. Mas é comum que a legislação seja
mais fluida quanto à incidência de novas demandas regulatórias sobre situações
jurídicas ativas já constituídas, gerando discussões sobre a estabilidade ou
não dessas situações, sobre a revogabilidade dos atos administrativos que as
constituíram, sobre os limites da incidência de novas demandas regulatórias e
sobre a indenizabilidade dos prejuízos.[1]
Um dos campos de disciplina legal pouco
densa é o das outorgas de direito ao uso da água, tema de crescente importância
e em relação ao qual os conflitos tendem a se tornar
mais e mais frequentes. O presente estudo, situado nesse campo, debruça-se
sobre problema especialmente desafiador: o do regime de uso da água para
geração de energia, que suscita competências das autoridades federais
setoriais, e seu eventual conflito com o regime de uso da
água para o abastecimento público, que pode envolver competências estaduais e
mesmo municipais.
Para tratar do assunto, o estudo
discute, no item 2, a configuração jurídica do serviço
de geração de energia hidrelétrica, especialmente quanto aos bens e direitos a
ele vinculados, como o reservatório e o direito de uso da água correspondente. No
item 3, expõe o regime geral de uso das águas e o regime
da captação para o abastecimento público.
Nos itens 4 e
5, o debate é sobre o modo de o uso múltiplo da água ser compatibilizado com os
direitos de uso anteriores e sobre quais são, em relação ao serviço público
federal de geração de energia, os efeitos da autorização posterior de uso de
água expedida por autoridade estadual. A dúvida relevante é se, ao dar ao
serviço de abastecimento a prioridade quanto ao uso da água,
a legislação também lhe teria assegurado a gratuidade desse uso.
Na conclusão, o estudo defende a
necessidade de o Direito brasileiro enfrentar, de modo abrangente, questões
como a que é analisada, por meio da afirmação de um direito geral à transição
adequada em face de novas demandas regulatórias.
1. O SERVIÇO DE GERAÇÃO DE ENERGIA, SUAS INSTALAÇÕES E DIREITOS
ASSOCIADOS: CONFIGURAÇÃO HISTÓRICA
No início do século XX, o serviço de
geração de energia hidrelétrica era juridicamente entendido, no Brasil, como
atividade privada desenvolvida a partir de bem público.
Isso foi comum
na experiência internacional do período: o início da produção de energia como
atividade privada, por vezes vinculada à outorga de direito de uso sobre bens
públicos (como no caso da energia hidrelétrica), à qual se seguiu uma
intervenção pública crescente, por formas variadas (GARCÍA; MARTÍNEZ, 1997, p.
17 e ss). Em alguns casos,
essa intervenção significaria a criação apenas de regulação administrativa
intensa, por meio de autoridades autônomas (nos Estados Unidos da América, por
exemplo). Em outros, levaria à submissão do setor à titularidade pública e à
atuação privada por meio de contratos de concessão de serviço público (caso do
Brasil, a partir de 1934). Chegou-se, inclusive, em muitos países, à ampla estatização
da própria exploração, pela atuação de empresas estatais; no Brasil, essa
estatização se iniciará no final da década de 1940, terá seu marco com a
criação da grande empresa estatal federal Eletrobrás, em 1962, e sofrerá recuo
parcial com as privatizações a partir da metade da década de 1990.
Os serviços elétricos que, no início,
eram privados e podiam envolver bens e competências dos vários entes da
Federação, vieram a ser publicizados no Brasil pela
Constituição Federal de 1934, que também iniciou o processo de federalização ao
atribuir à União competência tanto para legislar sobre “águas e energia
hidrelétrica” como para autorizar ou conceder “o aproveitamento industrial [...]
das águas e da energia elétrica” (art. 5º, XIX, “j”, e arts.
119 e 137). O processo de federalização do setor viria a ser concluído
com a Constituição de 1967, cujo art. 8º, XV, conferiria à União a
titularidade da exploração dos “serviços e instalações de energia elétrica de
qualquer origem ou natureza”.[2]
A Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, além de manter a titularidade federal sobre “os serviços e
instalações de energia elétrica” (art. 21, XII, “b”), e dar status constitucional expresso à previsão de que “potenciais
de energia hidráulica” são bens da União (art. 20, VIII), incluiu entre os bens
federais também “as águas em depósito”, quando “decorrentes de obras da União”
(art. 26, I).
Com isso, está hoje estabelecido na
própria CR/88 que não só os potenciais hidrelétricos são bens públicos, mas
também o são os reservatórios para depósito de água que tenham sido
construídos, diretamente ou por concessionárias, para as atividades hoje
classificadas como serviços públicos da União (como os serviços de geração
hidrelétrica), visto que são instalações funcionalmente vinculadas a eles[3].
São bens federais, portanto.[4]
De outro lado, a própria água existente nesses depósitos também é de
titularidade da União.[5]
A justificativa desse regime é garantir ao serviço público federal os meios
indispensáveis para seu funcionamento permanente.
Já nos primórdios, o poder público
transferia à empresa privada, por meio de concessão de exploração de potencial
hidráulico, três categorias básicas de direitos: o direito de fazer uso do bem
público, o potencial de energia hidrelétrica, isto é, de certo volume de água
geograficamente localizado, em quantidade suficiente para gerar a energia cuja
produção era admitida; o direito de fazer uso, para sua atividade, de todas as
instalações obtidas por seus próprios investimentos e obras, em que se incluem
não só as instalações industriais (turbinas e prédios em que são instaladas),
mas também os reservatórios construídos para o depósito da água que faz girarem
as turbinas; e, ainda, o direito de comercializar a energia produzida, segundo
as regras do setor. [6]
Por natureza, toda concessão de geração
hidrelétrica é uma outorga de direitos sobre a água. Não existe a primeira sem
a segunda: potenciais de energia hidráulica não podem ser dissociados do uso da
água. A água é da essência da concessão de geração hidrelétrica, cujo objetivo
nada mais é do que transformar a energia das águas em energia elétrica (LIMA,
2015, p.145).
O serviço público de geração tem
vinculado a si o direito de uso dos recursos
hídricos necessários, em função dos quais o empreendimento foi implantado.[7] Esse direito é constituído “automaticamente”
em favor da “instituição ou empresa que receber
a concessão ou autorização de uso de potencial de energia hidráulica” (Lei
Nacional de Recursos Hídricos, n. 9.433, de 1997, art. 7º, § 3º).[8]
Em face desse regime jurídico, os
reservatórios construídos e mantidos para viabilizar o que, atualmente, é o
serviço público federal de geração de energia elétrica - e a água a ele
associada, da qual a geração hidrelétrica não pode prescindir - integram o
conjunto de bens e de direitos da União correspondentes a esse serviço e, nessa
condição, seu uso e sua exploração estão delegados às concessionárias (empresas
do setor privado ou empresas estatais, conforme o caso).
2. O USO MÚLTIPLO DAS ÁGUAS E O RESPEITO, PELAS AUTORIZAÇÕES DE
DERIVAÇÃO POSTERIORES, DOS DIREITOS CONSTITUÍDOS ANTERIORMENTE
Todavia, a titularidade federal ou
estadual desses bens e serviços não é o mais importante. É que a titularidade,
seja de que ente público for, não exclui - e jamais
excluiu - a articulação e convivência, quanto à água, entre usos e serviços
diversos e entre as competências dos vários entes. Em outros termos, embora as
águas que, no regime atual, são sempre públicas, possam ser de titularidade ora
federal, ora estadual, isso não significa que o uso correspondente seja
exclusivo de seu titular.
Os direitos de uso desses bens públicos
podem ser outorgados a terceiros, para fins privados ou públicos, lucrativos ou
não. E é natural que o sejam. Isso, aliás, é reconhecido pela própria CR/88,
que, após atribuir à União a competência legislativa para “instituir sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos”, incluiu em seu escopo a
definição de “critérios de outorga de direitos de seu uso” (art. 21, XIX).
A água do reservatório vinculado a um
serviço público federal de geração - e a cujo uso o prestador tem direitos
constituídos em virtude da implantação do empreendimento - pode ser objeto de
outros usos. Esse regime decorre de normas mais gerais. A CR/88, por exemplo,
prevê que a União fará sua exploração “em articulação com os Estados onde se
situam os potenciais energéticos” (art. 21, XII, “b”, in fine).[9]
A vigente Lei Nacional de Recursos Hídricos assegura o “uso múltiplo das águas”
(art. 1º, IV), e a “utilização racional e integrada dos recursos hídricos”
(art. 2º, II).
Já no velho Código de Águas (Decreto Federal
n. 24.643, editado com força de lei), que, em 1934, organizou o regime das
águas e da energia hidráulica no Brasil, dizia-se ser “permitido a todos usar
de quaisquer águas públicas”, mas isso, por óbvio, observando-se “os
regulamentos administrativos” (art. 36, caput). O
próprio Código de Águas previu a possibilidade de fazer o aproveitamento das
águas públicas para serviços públicos (arts. 43 e 44), assegurando-se,
inclusive, a preferência para o serviço de abastecimento das populações (art.
36, § 1º).
Em qualquer caso, seria necessário ato
administrativo autorizando a derivação (o nome da época, no caso de serviço de
utilidade pública, era “concessão de derivação” - art. 43, caput),
com essa importante condição de ordem pública: “Art.
45 - Em toda a concessão [de derivação de águas] se estipulará, sempre, a
cláusula de ressalva dos direitos de terceiros”.[10]
Logo, embora seja possível
que a água do reservatório que integra o serviço de geração seja utilizada
também para outros fins - em concorrência, portanto, com a usina -, os direitos
econômicos anteriores do serviço de geração têm de ser respeitados pelos sujeitos
que receberem outorgas posteriores.
Essa norma nacional,
existente desde 1934, não foi revogada ou superada. Ao contrário, veio a ser
reforçada pela vigente Lei
Nacional de Recursos Hídricos. Esta manteve a exigência de outorga pública para
a derivação de água, por ato de autorização, inclusive quando feita para
serviços de abastecimento (art. 12, I), condicionando-a ao seguinte: “A outorga de uso dos recursos hídricos deverá
preservar o uso múltiplo destes” (art. 13, parágrafo único).
O regime jurídico é claro. A outorga a
terceiros de direito ao uso de água de reservatório do serviço público de
geração instalado e em funcionamento, conquanto possa ser feita, não poderá
prejudicar o uso múltiplo dessas águas. Tampouco poderá prejudicar ou
expropriar de modo automático os direitos já constituídos em favor do serviço
mais antigo, os quais também não são revogáveis discricionariamente.[11]
Isso condiciona também
o uso da água desse reservatório para o abastecimento público. É certo que, em
“situações de escassez”, esse uso, por atender ao “consumo humano”, tem
prioridade legal sobre outros usos da água, inclusive sobre a geração de
energia (Lei Nacional de Recursos Hídricos, art. 1º, III, em disposição
semelhante à que já constava no Código de Águas).
Só que a lei apenas
garantiu prioridade no uso, sem impor a extinção das anteriores autorizações de
uso. Essas se manterão vigentes, salvo quando - e se - vierem a ser formalmente
extintas por ato motivado da autoridade competente, em processo adequado e com
as indenizações devidas.[12]
A outorga posterior da
mesma água para o abastecimento não extingue o direito de uso anterior da geração
de energia, se a própria concessão desse serviço ainda está vigente. Para que o
direito de uso da água vinculado à usina desaparecesse, ou tivesse sua extensão
diminuída, a própria concessão de serviço teria de ser previamente encampada
pela União, com indenização também prévia (Lei Nacional de Concessão, n. 8.987,
de 1995, art. 37).
Assim, a autorização de derivação que,
posteriormente à implantação da geração de energia hidrelétrica, seja outorgada
a empresa de abastecimento público de água, deve, necessariamente, respeitar o
direito de uso da disponibilidade hídrica associada ao serviço federal de
geração, do qual decorre, no mínimo, o dever de indenizar.[13]
Os direitos mais recentes do abastecimento (direitos in natura
à prioridade na derivação da água) não excluem os direitos econômicos mais
antigos do serviço elétrico.
Incide no caso, por
força da legislação, em favor do serviço público mais antigo, um princípio da proteção da anterioridade no uso das águas, o
qual, em face da superveniência de direito de uso conflitante, preserva ao
menos os efeitos econômicos dos direitos constituídos por outorga
administrativa precedente e ainda em vigor.[14]
Essa proteção se traduz, no limite, no direito de o outorgado inicial exigir do
outorgado mais recente a indenização dos prejuízos que sofrer.
3. O DIREITO AO USO ECONÔMICO DA ÁGUA JÁ INTEGRADO AO SERVIÇO PÚBLICO
FEDERAL NÃO PODE SER DESAPROPRIADO POR ATO ESTADUAL POSTERIOR
Como foi demonstrado, é
possível que uma outorga administrativa expedida em favor de prestadora do
serviço de abastecimento público autorize a derivação de água de reservatório
anteriormente construído para a geração de energia. Mas em qualquer caso,
estarão ressalvados os direitos anteriores de terceiros e, muito especialmente,
os direitos da União - titular das instalações e dos serviços elétricos que
viabilizaram a disponibilidade da água a derivar - e de suas concessionárias de
serviço público.
Em virtude do regime
expresso nas normas aplicáveis, a obtenção, pela prestadora do serviço de
abastecimento, de autorização para a derivação de água de reservatório de geração
de energia, não tem juridicamente como imunizá-la contra o respeito aos
direitos econômicos anteriores da concessionária do serviço federal de geração
de energia.[15]
Para licitamente
retirar água do reservatório, é preciso que a prestadora, além de deter
autorização administrativa de derivação, respeite os direitos econômicos
associados às instalações e ao serviço público federal de geração, que são
anteriores e seguem existindo.
Esses direitos da
geração, especialmente quando a nova autorização vem de órgão estadual de
regulação hídrica, como é mais comum, não são desapropriados pelo ato desse
órgão. É que os Estados não desapropriam bens e direitos dos serviços federais,
embora o contrário seja possível (art. 2º, § 2º, da Lei de Desapropriação, o Decreto-Lei
n. 3.365, de 1941).
Jamais seria um órgão
estadual o competente para, unilateralmente, impor a extinção da outorga de
direito de uso para geração de energia, uma outorga oriunda da União, por estar
vinculada a serviço público federal, que usa bem federal; a vontade do Estado
não pode prevalecer sobre a da União, ao menos nesse caso.[16]
Ademais, em termos mais gerais, é às autoridades nacionais que cabe, em articulação com os Estados, e não às autoridades
estaduais isoladamente criar a Política Nacional de Recursos Hídricos, que
compatibilizará as outorgas de uso da água (arts. 4º e 7º, VIII) e será
observada quando das outorgas estaduais (art. 30, I).
Se assim é, como dar eficácia, nesses
casos de outorga anterior em favor da geração hidrelétrica, à competência
pública para autorizar o uso da água para o abastecimento?
4. A COMPENSAÇÃO ECONÔMICA PELA REGULAÇÃO EXPROPRIATÓRIA COMO MODO DE
RESPEITAR OS DIREITOS DE ANTERIORIDADE DO SERVIÇO FEDERAL DE GERAÇÃO DE ENERGIA
Não se porá um problema
de incompatibilidade prática entre as outorgas de uso se a concessionária
federal não se opuser à captação em si da água para o abastecimento. Mas um conflito
ocorrerá se houver a recusa da empresa de abastecimento em compensar a empresa de
geração pela perda financeira causada.
Será que a prioridade
legal do abastecimento na captação da água inclui o direito à gratuidade?
Em termos lógicos, o pagamento
de compensações financeiras é compatível com o exercício, pela empresa de
abastecimento de água, do direito in natura de
derivar água, oriundo da autorização, donde não haver sentido em supor que o
surgimento dessa autorização excluiria todos os direitos da empresa de energia
- e, muito especialmente, que impediria ou dispensaria o pagamento pelos
prejuízos sofridos por essa empresa. O desembolso de dinheiro não obsta nem
obstrui o uso prioritário da água; apenas o condiciona financeiramente.
Além disso, o serviço de abastecimento
de água à população não é gratuito. A prestadora recebe tarifas de seus
usuários para cobrir todos os seus custos. Em geral, trata-se de empresa, que
distribui lucros a seus acionistas, de modo que a água que deriva do
reservatório de energia será utilizada para uma exploração econômica lucrativa.
A concessionária do serviço público
federal de geração de energia elétrica tem direito ao uso da água do
reservatório correspondente, cuja fruição econômica é indispensável à
viabilidade da prestação do serviço concedido e é outorgada pela concessão.
O modo correto de compatibilizar os
direitos concorrentes sobre a água do mesmo reservatório é: por um lado,
assegurar-se, quanto à captação em si, da prioridade ao serviço de
abastecimento; e, quanto à questão econômica, fazer-se a compensação, pelo
serviço beneficiado (o de abastecimento), das perdas financeiras que tal
captação cause ao serviço mais antigo e onerado (o de geração de energia, que titulariza e mantém as instalações, tendo arcado e ainda
arcando com os respectivos investimentos e despesas de custeio).
Pode-se cogitar aqui da aplicação da
ideia de regulação com efeitos expropriatórios ope legis. É a
própria lei nacional a responsável por impor a prioridade do abastecimento
sobre outros usos da água, o que inclui a hipótese de, sendo os recursos
insuficientes para a captação concomitante, o titular de direitos anteriores ver-se impedido ou limitado no seu exercício in natura. Portanto, resulta da lei uma regulação potencialmente
expropriatória. Mas expropriações não se confundem com confisco, tampouco com
revogações administrativas por conveniência e oportunidade. Em suma: regulações
expropriatórias dão direito a indenização, em forma
adequada.[17]
No caso, tendo sido a lei específica
silente a respeito do dever de compensar, seu fundamento jurídico pode ser
buscado em normas mais gerais de Direito. Em primeiro lugar, a norma que impede
o enriquecimento sem justa causa, às custas de outrem
(Código Civil, art. 884). E esse enriquecimento ocorreria se, para explorar os
serviços econômicos pelos quais é remunerada mediante tarifa, a empresa de
abastecimento pudesse usar, sem quaisquer custos, o patrimônio federal,
concedido ou não. De outro lado, na norma que impõe a quem, por ação
voluntária, causar dano a outrem, o dever de indenizar (Código Civil, art.
186). A retirada de água pela empresa de abastecimento priva a empresa de
energia de insumo indispensável à geração, afetando sua capacidade de prestar o
serviço público concedido e de auferir a receita a ele vinculada, que são
direitos constituídos em seu favor, causando-lhe o prejuízo
correspondente.
A pergunta remanescente é: tem
importância jurídica a hipótese de o ato de outorga do direito ao uso da água
não dizer expressamente que a empresa de abastecimento deve fazer pagamento de
compensação a terceiros? Isso dá direito
à captação gratuita?
A resposta é negativa. A autorização
administrativa para o abastecimento não tem efeitos paralisantes de
competências e direitos titularizados por terceiros,
e muito especialmente pela União e por suas concessionárias, em relação ao
reservatório de geração e à água nele depositada. Não existe previsão expressa
em norma constitucional, legal ou regulamentar de qualquer espécie de que as
autorizações expedidas pelos órgãos estaduais, para a derivação de água de
reservatório anteriormente construído para o serviço federal de geração de
energia elétrica dariam às autorizadas o direito de fazê-lo sem qualquer outra
exigência ou condição.
Se não há norma expressa nesse sentido,
seria a imunidade uma consequência jurídica necessária da autorização de
derivação?
Autorização
administrativa de espécie alguma tem tais efeitos imunizantes. A licença
municipal ao particular para erigir construção sobre terreno da Marinha ou para
nele manter estabelecimento comercial não o dispensa de observar as condições
impostas pela União para uso privado do imóvel cuja titularidade pertence a ela;
tampouco o dispensa do pagamento do foro anual. As licenças municipais são
condições necessárias da licitude da edificação e do uso comercial do imóvel,
mas estão longe de ser condições suficientes.
Em outro exemplo, nem o
licenciamento anual dos veículos nem a licença para conduzi-los, expedidos pela
autoridade estadual de trânsito, desobrigam os motoristas de pagar pedágio
quando transitarem por uma rodovia federal concedida. Tais licenciamentos são
condições necessárias - mas não suficientes - para o trânsito lícito pela
rodovia.
Portanto, a concessionária de energia
tem direito à compensação econômica. Resta, então, saber se a indenização dos
prejuízos poderia ser transferida compulsoriamente à União, concedente do
serviço, sob o argumento de que sua concessionária de energia estaria sofrendo
um desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato de concessão.
Não é o caso, pois não se trata
propriamente de reequilíbrio da concessão de energia elétrica, mas de
compensação, pelo serviço mais novo (o de abastecimento de água), das perdas do
mais antigo. Das normas sobre a harmonização dos usos de recursos hídricos, vistas
anteriormente, resulta o dever de a autorizada posterior respeitar os direitos
da anterior. Por isso, não há como, em princípio, impor à União, titular do
serviço precedente, o ônus de, mediante o reequilíbrio da concessão, suportar
perdas causadas pelo serviço de abastecimento de água, autorizado
posteriormente.[18]
CONCLUSÃO
A segurança jurídica é valor fundamental
na vida econômica, de modo que a implantação de novos programas, por mais relevantes,
urgentes ou prioritários que sejam, não pode dispensar
a adequada composição entre situações constituídas no passado e novas demandas
regulatórias.
O exemplo apresentado neste estudo é de
conflito que, não podendo ser resolvido pela simples eliminação dos direitos já
constituídos (direitos ao uso do reservatório e da água pelo serviço de geração
de energia, responsável pelos investimentos correspondentes), foi composto de
modo apenas indireto pelas normas setoriais sobre água (as quais, ao mesmo
tempo, dão prioridade ao abastecimento público na captação e impõem o respeito
aos direitos anteriores), de modo que sua solução completa deve basear-se em
normas mais gerais sobre o dever de indenizar para evitar o enriquecimento
ilícito e compensar os prejuízos econômicos causados.
Conquanto o dever de indenizar seja
solução juridicamente correta para o caso, sua afirmação - o que este estudo
procurou fazer e fundamentar - está longe de ser suficiente para a necessária segurança
jurídica. Há um claro déficit de
procedimento nas normas setoriais envolvidas, as quais permitem o surgimento de
novas outorgas, com impactos sobre direitos anteriores, sem que a questão vital
da transição seja analisada no momento certo e de modo completo.
Como se pode evoluir juridicamente
quanto a isso?
Uma alternativa seria a complementação
das normas legais setoriais para impor procedimentos capazes de equacionar
adequadamente a transição, para casos como o tratado neste estudo. Alternativa
mais abrangente - pois valeria para qualquer setor e para todas as esferas da
Federação - seria a inclusão, no Direito brasileiro, de norma geral que
determine que toda decisão administrativa que impuser dever ou condicionamento
novo de direito deverá prever um regime de transição; e, caso a decisão não o
preveja, que seja garantida ao sujeito obrigado a possibilidade de negociar tal
regime com a autoridade, como condição de eficácia do novo dever ou condicionamento.
Proposta nesse último sentido está sendo
examinada no Congresso Nacional, no Projeto de Lei do Senado n. 349, de 2015,
apresentado pelo Senador Antônio Anastasia, com o
objetivo de incluir, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - o Decreto-Lei
n. 4.657, de 1942, antiga Lei de Introdução ao Código Civil -, diversas
disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do
direito público.[19]
O argumento final deste artigo é que o direito geral à transição adequada deve ser afirmado na
regulação administrativa brasileira, sendo perigoso que novas demandas
regulatórias sejam criadas sem que, no momento oportuno, se considerem e se conciliem
seus efeitos sobre as situações já constituídas.
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Artigo
recebido em: 18/04/2017.
Artigo
aceito em: 03/05/2017.
Como citar este artigo (ABNT):
SUNDFELD, Carlos Ari. Prioridade Legal do
Abastecimento Público e Geração Hidrelétrica. Revista
Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 14, n. 28, p.
, jan./abr. 2017. Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/1052>.
Acesso em: dia mês. ano.
[1] Sobre esse debate, no Direito brasileiro, v. SUNDFELD,
1993, p. 38-52
e p. 86-118, especialmente
os capítulos IV - Constituição de direitos privados por ato administrativo e
VII - Sacrifícios de Direitos. Para o debate europeu, v. ENTERRÍA e FERNÁNDEZ, 2015,
p. 129-186, especialmente o Capítulo XVII - A Incidência da Ação Administrativa
nas Situações Jurídicas do Administrado.
[2] Para compreender a sucessão de normas constitucionais
e legais, v. OLIVEIRA, 1973, p. 40-60.
[3]
Sobre o conceito de “instalações”, constante do art.
21, XII, “b” da CR/88,
explica LOUREIRO, 2009, p. 98: “conjunto de bens corpóreos que adquire
individualidade em razão de sua aptidão para a realização de um
certo propósito. Os bens que compõem
uma instalação são funcionalmente
ordenados”. Quanto à inclusão dos reservatórios entre as instalações do serviço
de geração, vale a observação de ÁLVARES, 1978, p. 172: os “reservatórios [...]
se acham afetados de serviço público”, e “as águas do reservatório [têm] o
caráter de águas públicas”.
[4]
No caso de outorgas anteriores ao Código de Águas e à
Constituição de 1934, época em que os serviços não eram públicos, os bens
adquiridos pelas concessionárias seriam privados. Mas, com a publicização, operada nesse ano, tais bens passaram a ficar sujeitos à reversão ao patrimônio público federal, ao
final da concessão, com a indenização dos investimentos não amortizados (a
respeito, por exemplo, TRF 1ª. Ac. 010455176, em CAMPOS, 2001, p. 560-2).
No caso dos empreendimentos surgidos antes do Código de Águas (como a
famosa usina de Henry Borden, em Cubatão (SP), à qual
se vinculam as represas de Guarapiranga e Billings, usina cuja origem remonta a
uma concessão federal de exploração do potencial hidráulico
feita em favor da empresa Light nos primeiros anos do século XX), a
incorporação formal ao patrimônio da pessoa jurídica União não ocorreu até
hoje, porque a relação de concessão nunca se extinguiu, estando em vigor
continuamente. Essa continuidade tem a ver, de um lado, com as ampliações dos
empreendimentos, que frequentemente ocorreram, sobretudo nas primeiras décadas,
aumentando os investimentos.
De outro lado, tem a ver com a própria história regulatória do setor
elétrico, que envolveu diversas transições de modelo econômico, algumas
bastante longas e radicais, que foram se processando ao mesmo tempo em que o
sistema como um todo se expandia extraordinariamente e se integrava em âmbito
nacional (para o período até 1983, consultar TÁCITO, 1984, p.
40-50; para o posterior, WALTENBERG, 2000, p. 352-377.
Assim, por conta dos desequilíbrios causados pelas transições
regulatórias, como regra geral não se conseguiu aplicar a cada concessão
elétrica o mecanismo da extinção natural, ao fim do prazo de vigência
inicialmente estipulado, e as concessões tiveram de se prorrogadas e renovadas
em sequência.
Portanto, quando se diz que os reservatórios, como instalações do
serviço elétrico, são bens federais, essa afirmação não pretende entrar no mérito
sobre a ocorrência ou não da amortização dos investimentos, mas apenas destacar
que os citados bens são bens do serviço público
federal e a ele se vinculam, condição em que gozam do regime
jurídico dos bens públicos, acompanhando o serviço em mãos de quem ele estiver.
[5] Há
autores que, contestando a opção terminológica da própria Constituição, advogam
que a água não constituiria “bem público”, mas sim
“bem social” (AYALA, 2007, p. 291) ou “bem ambiental” (FIORILLO; FERREIRA, 2009,
p. 64).
Mas esse debate não tem impacto direto neste estudo, pois o objetivo das
propostas dos autores não é contestar a competência, da entidade pública
definida como titular da água, para fazer as outorgas do direito de uso, mas
justamente o contrário: defender uma “gestão pública sobre as águas”, de
caráter fiduciário, o que é correto (AYALA, 2007, p. 295).
De qualquer modo, têm sim importância as normas sobre a titularidade
pública da água (titularidade essa que pode ser federal ou estadual, conforme o
caso), pois é dessas normas que se extrai o critério para identificar a
autoridade, se federal ou estadual, competente para a dita gestão pública da
água, aí incluída a outorga de direitos de uso.
[6]
Um exemplo. O decreto do Presidente da República n.
16.844, de 27 de março de 1925, aprovou a execução do plano de obras da Light
para os municípios de Salesópolis, Santos, Mogi das
Cruzes, São Bernardo, Santo Amaro e Itapecerica, no Estado de São Paulo, para
“aproveitamento da força hidráulica do rio Tietê e de alguns dos seus
afluentes”, de que já era “concessionária, nos termos do Decreto n. 6.192, de
23 de outubro de 1906, dos favores constantes do Decreto n. 5.646, de 22 de
agosto de 1905, para o aproveitamento de força hidráulica”.
Da conjugação desses decretos federais, veio a
forma definitiva da outorga federal em favor da Light do potencial hidrelétrico
de que resultou a construção dos reservatórios de Guarapiranga e Billings e da
usina Henry Borden. Para a execução do projeto,
outras aprovações foram depois necessárias, como a da Lei do Estado de São
Paulo n. 2.249, de 27 de novembro de 1927, que autorizou a empresa a canalizar,
alargar, retificar e aprofundar o leito do rio Pinheiros e de alguns de seus
afluentes. Sobre a história da empresa no período e suas outorgas, v. SANCHES,
2011, p. 88-107.
[7] Nos anos iniciais, em que a geração hidrelétrica era
atividade privada, a concessão pública tinha o caráter de concessão dominial,
de uso de bem público (a água e seu potencial energético) para atividade
industrial. Quando a geração se tornou serviço público, a concessão passou a
ser mais ampla, incluindo o direito e o dever de prestar o próprio serviço, sob regulação do concedente, e o natural direito de usar o
indispensável bem público. A respeito: MACHADO, 1998,
p. 15 e ss.
Na geração de energia hidrelétrica por concessão de serviço,
“naturalmente [...] a utilização desses bens públicos constitui, para a
concessionária, um direito de que o contrato de concessão regula a fruição” (AUBY;
BOM; AUBY; e TERNEYRE, 2016, p. 115).
POMPEU, 1972, p. 172-173, analisando a situação de outorga do uso da
água, um bem público, para a concessão de serviço público, explica: “o uso do
bem público estaria incluído no objeto da concessão de serviço, por ser a sua
própria essência.”. Ao ver do autor, seria inexato falar, no caso, de uma
concessão de uso da água, pois esta não teria qualquer autonomia, não tendo
como ser separada da própria concessão de serviço.
[8]
MACHADO, 2013, p. 531, falando em “consequência
automática”, explica: “quem receber a concessão ou a autorização de uso de
potencial de energia hidráulica receberá a outorga de direito de uso de
recursos hídricos".
Hoje em dia, essa operação envolve a atuação, no âmbito federal, de duas
autoridades distintas: a ANA - Agência Nacional de Águas, que fará a reserva
prévia da disponibilidade hídrica, e a ANEEL - Agência Nacional de Energia
Elétrica, que fará a licitação e a outorga do potencial hidrelétrico e do
serviço público de geração, nas quais estará automaticamente embutido o direito
de uso do recurso hídrico reservado para esse fim.
No passado, até 1997, não havia essa dissociação de competências, que
estavam concentradas na mesma autoridade. No âmbito federal, por exemplo, em
1939, para dar execução ao Código de Águas, foi criado o CNAEE - Conselho
Nacional de Águas e Energia Elétrica, que seria extinto em 1969 e teria suas
competências repassadas para o Departamento Nacional de Águas e Energia
Elétrica - DNAEE, que seria extinto quando da criação da ANEEL, em 1996, e do Conselho
Nacional de Recursos Hídricos, em 1997, e da ANA, em 2000.
Aliás, o art. 17 do projeto da Lei Nacional de Recursos Hídricos,
aprovado pelo Congresso Nacional, procurava deixar clara a aludida separação de
competências. Mas acabou vetado quando da edição da lei, em 1997, porque tinha
redação confusa, gerando insegurança, como explica GRANZIERA, 2001, p. 191. O
silêncio legal veio a ser resolvido com o art. 7º da Lei de Criação da ANA, n.
9.984, de 2000, que regulou a articulação das competências das diferentes
agências (esse artigo teria nova redação com a Lei n. 3.081, de 2015).
[9]
Até que a Constituição de 1988 atribuísse apenas à
União a titularidade dos potenciais de energia hidrelétrica, os Estados também
tinham essa titularidade, em certos casos. A norma da parte final do art. 21,
XII, “b”, foi, portanto, uma solução de compromisso, procurando manter para os
Estados algum espaço de influência no exercício das competências federais
decorrentes dessa titularidade. V. LOUREIRO, 2009, p. 160, nota 265.
[10]
Comentando o dispositivo, NUNES, 1980, p. 167, esclarece
tratar-se dos “direitos de terceiros resultantes de concessão anterior”.
[11] Embora,
em algumas leis de direito administrativo, o termo “autorização” seja usado
para imprimir um regime de relativa precariedade para as outorgas, no sentido
de revogabilidade discricionária, este não é o caso da Lei Nacional de Recursos
Hídricos, cujo regime é diverso, dada a constituição de direitos subjetivos,
razão inclusive da inconveniência da opção terminológica, como observa GRANZIERA,
2009, p. 203.
Quanto à impossibilidade de revogação puramente discricionária da
autorização de derivação de água, vale a lição precisa de TÁCITO, 1997, p.
737-8, formulada em caráter geral:
“O efeito constitutivo da autorização se configura tanto na explicitação
dos poderes virtuais do direito individual, como ainda na imposição de deveres
e obrigações a terceiros e à própria administração.
“Resulta, dessa circunstância, um limite à revogabilidade das
autorizações, que não se podem desfazer, discricionariamente, uma vez
consolidado o direito individual. [...]
“Não é outra a tradição de nosso direito administrativo. Os atos
discricionários são, em princípio, livremente revogáveis, mediante nova
apreciação do mérito. A regra cede, no entanto, diante dos efeitos consumados
que importam a criação de direitos subjetivos, protegidos pelo princípio geral
de legalidade.”
[12] Lei Nacional de Recursos Hídricos, art. 15, V: “a outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado”, se houver “necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas”. O dispositivo é claro e afasta qualquer ideia de extinção automática.
[13]
Esse preceito, relativo à proteção de um serviço
público (o de energia), ainda mais se fortalece diante da constatação de que
uma jurisprudência consistente vem reconhecendo direito de indenização, por
empresa estatal a exploradores de atividades puramente
privadas, como a irrigação, mesmo quando preteridas em favor do consumo humano.
A respeito, TRF-5, Apelação/Reexame Necessário nºs 14.560, 14.567 e 14.865.
[14]
Não se trata de peculiaridade do Direito brasileiro.
Na experiência norte-americana, por exemplo, conquanto haja grande diversidade
entre os direitos de águas dos vários Estados, a regra predominante é também a
da proteção da anterioridade, com suas consequências econômicas. A respeito, v. LAITOS; TOMAIN, 1992, p. 363 e ss..
[15]
Falando do “uso do potencial de energia elétrica”, MARQUES,
2010, p. 475, destaca corretamente a presença e proteção “do interesse
econômico do empreendedor”, o qual “é acompanhado do interesse coletivo de
geração de energia elétrica”.
[16] É a ponderação de MACEDO, 2010: “para efeito de
aproveitamento energético deverá predominar a vontade nacional sempre que
confrontada com o princípio da autonomia dos Estados, isto porque se está
diante de uma situação regional cujo deslinde entende com a questão da
estratégia e da segurança nacional”.
[17] Sobre
regulações expropriatórias na experiência norte-americana, v. MERCURO, 1992; e FISCHEL,
1995. No Brasil, v. BINENBOJM, 2010; CYRINO, 2014, p. 199-235; e KALAOUN, 2016.
[18]
Mas o dever de a empresa de abastecimento indenizar
não existirá se, por deliberação autônoma da própria União, titular do serviço,
o sistema elétrico tiver mecanismos para compensar automática, imediata e
integralmente a empresa de energia pelas perdas
decorrentes da impossibilidade de gerar. Isso porque, na hipótese, não haverá
mais prejuízo a ser compensado: para fins financeiros, o sistema elétrico
procederá perante sua concessionária como se ela de fato houvesse gerado
energia.
Se
não houver isso, a empresa de abastecimento estará obrigada a compensar os prejuízos
que estiver causando ao gerador. E essa obrigação persistirá enquanto existir o
empreendimento público elétrico, em mãos diretamente da União ou de qualquer
empresa a quem ela transferir esse direito.
[19] A ideia tem origem acadêmica, como destacado pelo
Senador na justificativa de seu projeto, que acolheu o texto proposto por SUNDFELD
e MARQUES NETO, 2013, p. 277-285.
Na versão aprovada pelo Senador Federal em 29 de março de 2017, o tema
específico foi tratado no seguinte dispositivo:
“Art. 23 - A
decisão administrativa, controladora ou judicial que, com base em norma
indeterminada, impuser direito ou condicionamento novo de direito, ou fixar
orientação ou interpretação nova, deverá prever um regime de transição, quando
indispensável para que a submissão às exigências se opere de modo proporcional,
equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais.
Parágrafo único - Se o regime de transição não estiver previamente
estabelecido, o sujeito obrigado terá direito a negociá-lo com a autoridade,
segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as
limitações legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera
administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso”.