DOI: http://dx.doi.org/10.18623/rvd.v14i28.1010
A DIMENSÃO SOCIOAMBIENTAL DO ESTADO DE DIREITO[1]
THE SOCIO-ENVIRONMENTAL DIMENSION
OF THE LEGAL STATE
Ana Paula Maciel Costa Kalil
Doutoranda em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
Mestre em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
E-mail:
anapaulamaciel75@gmail.com
Heline Sivini
Ferreira
Doutora e Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professora
Adjunta do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
E-mail:
hsivini@yahoo.com.br
RESUMO
A sociedade mundial tem vivenciado profundas e significativas mudanças, que têm ensejado questionamentos radicais e múltiplas redefinições. Está-se diante de uma crise paradigmática. À vista desses fenômenos, o presente artigo propõe-se a abordar a progressiva relevância da temática socioambiental a partir das lentes da teoria dos direitos fundamentais na formatação do projeto jurídico-constitucional hodierno, insculpido da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/88. Com base na pesquisa bibliográfica, demonstra-se, por indução, que a complexidade dos problemas ambientais enfrentados e as novas reivindicações das sociedades na conjugação dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensões, particularmente pela ênfase conferida à proteção do macrobem ambiental, consagraram o direito a um meio ambiente equilibrado como direito humano e fundamental. A emergência dessa consciência, conjugada com o respeito à dignidade da pessoa humana, enseja a preocupação com um comportamento ético e socioambientalmente responsável. Nessa perspectiva, conclui-se que a situação passa a exigir uma profunda mudança no standard atual de Estado, que seja condizente com essa preocupação, qualificando-o de Estado Socioambiental de Direito.
Palavras-chave: Crise socioambiental. Meio ambiente. Princípio
da dignidade da pessoa humana. Estado de Direito.
ABSTRACT
The world society
has experienced profound and significant
changes that have led to
radical questions and multiple redefinitions.
A paradigmatic crisis is being faced.
Due to these phenomena, the present article proposes to address the
growing relevance of the socio-environmental theme from the fundamental rights
perspective in shaping the legal and constitutional project designed nowadays,
as inserted in the CRFB/88. Through bibliographic research, it is shown, by
induction, that the complexity of environmental problems as well as the new
claims of societies for the conjugation of first, second and third dimensions
of rights, particularly because of the emphasis given to the protection of the
environment, has motivated the recognition of the ecological balanced
environment as a human and a fundamental right. The emergence of this
consciousness, conjugated with the respect of the principle of human dignity,
has develop a new pattern of behavior, which is guided
by socio-environmental ethics and responsibility. This context, therefore, requires a deep
change in the current standard of the State, wich is
compatible with this concern, qualifying it of the Social-Environmental Legal
State.
Keywords:
Socioenvironmental crisis. Environment.
Principle of human dignity. Legal State.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como escopo
abordar a progressiva relevância da temática socioambiental a partir das lentes
da teoria dos direitos fundamentais na formatação do projeto
jurídico-constitucional hodierno, insculpido da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/88.
Assim, verifica-se que, para a
compreensão da incorporação da dimensão socioambiental no Estado de Direito, é
preciso detectar o contínuo interesse pelas questões socioambientais, de forma
a analisá-las a partir do aumento da preocupação ambiental. Nessa perspectiva,
importa considerar o movimento de constitucionalização da garantia dos
processos ecológicos e o consequente esverdeamento[2]
do direito em suas dimensões, destacando-se as necessidades impostas ao
ordenamento jusambiental pela sociedade moderna; e,
ainda, o movimento da rediscussão da dignidade da pessoa humana no contexto
socioambiental.
A dignidade humana, entendida como
primado ou alicerce que vincula a realização das tarefas estatais, adquire um significado diferenciado quando contextualizada
numa sociedade plural e axiologicamente complexa, cuja ordem se encontra
permanentemente aberta para resguardar, em sua esfera protetiva, a natureza de per si. Nesse
sentido, faz-se mister agregar novas tarefas ao Estado
de Direito, tendo em vista a reivindicação por uma solidariedade intergeracional bem distante da racionalidade jurídica
clássica.
Percebe-se, portanto, que a crise
socioambiental traz consigo uma nova dimensão de direitos fundamentais -
chamada de terceira dimensão - a qual impõe ao Estado de Direito o desafio de
inserir, entre suas tarefas prioritárias, a proteção do meio ambiente.
Desvencilha-se de uma visão puramente antropocêntrica para o antropocentrismo
alargado, que justifica um novo standard
estatal, cujos fundamentos se desenvolvem sobre prescrições constitucionais,
democráticas, sociais e ambientais.
Portanto, com foco em uma revisão
bibliográfica, a exemplo de Sarlet, Morato Leite, Canotilho, Wolkmer, Lima, Sánches Rubio, Kloepfer e Benjamin, entre outros, destaca-se que a crise
socioambiental reclama a reformulação dos pilares de sustentação do Estado, por
meio do estabelecimento de uma política voltada para o uso sustentável dos
recursos, considerando as futuras gerações.
Em decorrência disso, evidenciou-se, por
fim, que a dimensão socioambiental está plenamente contextualizada na CRFB/88,
demonstrando a proximidade entre seus objetivos e o conteúdo do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e dos deveres estatais
de proteção ambiental. Essa proximidade é essencial na persecução de uma
condição ambiental capaz de favorecer a harmonia entre os ecossistemas e, por
conseguinte, garantir a plena satisfação da dignidade para além dos seres
humanos, sendo esse novo modelo qualificado por alguns autores, como Sarlet (2010), como Estado Socioambiental de Direito.
1 DO SOCIOAMBIENTALISMO
A Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, no ano de 1992, chamada
Eco-92, é considerada por Santilli (2005, p. 43) como
o marco histórico do ambientalismo nacional e
internacional. Nessa ocasião, segundo essa autora, foram assinados diversos
documentos importantes para o desenvolvimento da concepção do
socioambientalismo, prevendo a implementação de
formulações políticas, sociais e ambientais em todo o mundo. Essa conferência
trouxe grande visibilidade política para os movimentos ambientalistas e para
muitos dos temas das agendas nacional e global.
Em virtude da Eco-92,
foi criado o Fórum Brasileiro de Organizações Não Governamentais e Movimentos
Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que tem desempenhado papel
essencial na promoção da participação da sociedade brasileira no que se refere
às articulações entre movimentos sociais e ambientalistas.
Santilli (2005, p. 34), ao discorrer sobre o
movimento socioambiental e sua evolução histórica e conceitual, sintetizou que
o
socioambientalismo [...] desenvolveu-se com base na concepção de que, em um
país pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de
desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental
– ou seja, a sustentabilidade das espécies, ecossistemas e processos ecológicos
– como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para
a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como
justiça social e equidade. Além disso, o novo paradigma de desenvolvimento
preconizado pelo socioambientalismo deve promover e valorizar a diversidade
cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla
participação social na gestão ambiental.
Ainda no decorrer do processo, importa destacar
o surgimento do socioambientalismo brasileiro a partir da segunda metade de
1980, fruto de articulações entre movimentos sociais e ambientalistas,
realizadas, também, pelo Instituto Socioambiental - ISA -[3]
na defesa dos bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio
ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos, mediante
propostas integrativas dos bens e direitos socioambientais, tangíveis e
intangíveis.
Para
Marés (2002, p. 38) os bens socioambientais
São
todos aqueles que adquirem essencialidade para a manutenção da vida de todas as
espécies (biodiversidade) e de todas as culturas humanas (sociodiversidade).
Assim, os bens ambientais podem ser naturais ou culturais, ou, se melhor
podemos dizer, a razão da preservação há de ser predominantemente natural ou
cultural se tem como finalidade a bio ou a sociodiversidade, ou a ambos, numa interação necessária
entre ser humano e o ambiente em que vive.
Isso implica dizer que, quando se aborda
a questão socioambiental, busca-se analisá-la de forma multidimensional, com
base na observação do ser humano pertencente ao meio ambiente como um todo,
numa relação indissociável de interdependência e transversalidade.
De acordo com Veiga (2007, p. 105), a
emergência do neologismo socioambiental, em que pese ele tenha sido incorporado facilmente pela sociedade brasileira, evoca um
sentido muito mais intrincado do que aparentemente se apresenta, visto que a
maneira de perceber as mudanças sociais jamais poderá estar dissociada das
mudanças ocorridas na relação homem/natureza, e vice-versa.
O Papa Francisco, corroborando essa
compreensão (2015, p. 114), anuncia, em sua recente Carta Encíclica Laudato Si, que,
Quando
falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação:
a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto nos impede de
considerar a natureza como algo separado de nós ou como mera moldura da nossa vida.
Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões pelas
quais um lugar se contamina exigem uma análise do funcionamento da sociedade,
da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a
realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é
possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do
problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações
dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises
separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise
socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral
para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente,
cuidar da natureza.
Não se trata, pois, de dois problemas
distintos, cujas soluções possam ser buscadas e aduzidas apartadamente. A visão
socioambiental demanda, portanto, uma abordagem genuinamente harmônica,
sincrônica e equilibrada para obter desfechos factíveis, capazes de beneficiarem
a todos: o homem e a natureza.
2 Da fundamentalidade dos direitos em suas dimensões e as conformações
do Estado
Os dois últimos séculos foram marcados
por profundas mudanças em todos os níveis da existência. Os avanços da ciência
alteraram definitivamente o modus vivendi
da humanidade. A esse percurso convencionou-se denominar ‘evolução’, por ter
aumentado tanto a expectativa quanto a qualidade de
vida com os progressos alcançados, seja na tecnologia, na medicina, na
estética, na cultura e nos direitos.
No entanto, a contrapartida dessa ‘evolução’ se traduz em uma degradação ecológica e
social nunca antes vista (LEITE; AYALA, 2003, p. 57). Sendo assim, a luta pelo
direito[4]
sempre foi o objetivo maior de todas as sociedades. Do direito natural ao
direito positivado, eles são frutos dos acontecimentos históricos que levaram o
homem a modificar suas aspirações, assim como a necessidade de reconhecimento
de novas necessidades básicas.
O conceito de Estado, por consequência,
foi sendo reestruturado com o propósito de atender aos anseios de seus
cidadãos, de modo que cada época reproduz uma determinada prática jurídica
vinculada às necessidades humanas e às relações sociais (WOLKMER, 2012, p. 15).
Para Bobbio (1992, p. 36), o real
surgimento de alguns direitos deriva das lutas e movimentos travados pelos
homens, cujas razões devem ser buscadas na realidade social da época a partir
da qual foi derivada toda a gama de direitos chamados, contemporaneamente, de
‘fundamentais’.
Assim, no intuito de cumprir com a
função de defesa da sociedade na forma de limitação normativa ao poder estatal,
sobreveio um conjunto de valores e direitos consubstanciados nos direitos
fundamentais[5], que foram positivados e passaram a traçar os parâmetros fundamentais de todo o ordenamento
jurídico interno. Isto posto, consoante Sarlet (2012, p. 36),
a
história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no
surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser
residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa
humana e dos direitos fundamentais do homem. Neste contexto há que dar razão
aos que ponderam ser a história dos direitos fundamentais, de certa forma (e,
em parte, poderíamos acrescentar), também a história da limitação do poder.
Em decorrência da riqueza e da ampliação
desses direitos, deu-se origem à classificação dos direitos fundamentais em
gerações. Mas como o surgimento de novas gerações não resultou na extinção das
anteriores, configurando-se mais como um processo progressivo, cumulativo,
qualitativo e de complementaridade (BREGA FILHO, 2003) dos mesmos direitos,
muitos doutrinadores adotam o termo ‘dimensão’, por considerarem não ter havido
uma sucessão desses direitos, mas sim a coexistência de todos eles, abertos e
mutáveis.
Por conseguinte, o importante é destacar
que, segundo Lunõ (2005, p. 109), a positivação dos
direitos fundamentais resulta do constante processo dialético entre evolução na
esfera filosófica, com a paulatina afirmação no terreno ideológico e o seu
gradativo reconhecimento na esfera do direito positivo, que resultou na
constitucionalização dos direitos fundamentais.
A evolução dos direitos fundamentais na
ordem institucional manifestou-se em três[6]
dimensões sucessivas: direitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade,
como num presságio da Revolução Francesa.
2.1 Direitos de Primeira Dimensão
Os direitos de primeira dimensão, segundo
Wolkmer (2012, p. 22), surgem
ao longo do século XVIII e XIX, como manifestação do ideário jusnaturalista secularizado, do racionalismo iluminista, do
contratualismo societário, do liberalismo
individualista e do capitalismo concorrencial.
Identifica-se, nessa oportunidade, uma
separação entre Estado e Sociedade, na qual esta exige daquele apenas uma abstenção,
ou seja, uma obrigação negativa, visando à não
interferência na liberdade dos indivíduos. Então, nesse momento histórico, o
Estado era tomado como “violador dos direitos fundamentais”, o que configurava
a feição defensiva dos direitos liberais.
Nesse contexto, assumem especial
importância, no rol desses direitos, os direitos à vida, à liberdade e à
propriedade, assim como aos direitos civis e políticos, que têm como titular o
indivíduo de posse de seus “direitos de resistência ou oposição contra o Poder
Público” (BONAVIDES, 2011, p. 517), identificando-se uma nítida separação entre
Estado e Sociedade.
A primeira dimensão dos direitos
fundamentais é aquela que marcou o reconhecimento de seu status constitucional
formal e material (SARLET, 2012, p. 37) por surgir no contexto em que se
asseguram as teses do Estado Democrático de Direito, da tripartição dos poderes
e do princípio da soberania popular[7].
2.2 Direitos de Segunda Dimensão
No momento seguinte, quando a dimensão
eminentemente patrimonialista do ideal liberal, com o impacto da industrialização,
reproduziu no âmbito social um quadro alarmante de injustiça e desigualdade
social, percebeu-se que a consagração formal dos direitos de liberdade e
igualdade não garantia seu efetivo gozo (SARLET, 2012, p. 47). A partir de
então, várias manifestações contra o sistema vigente de concentração de
riquezas eclodiram na busca da igualdade no âmbito coletivo.
Passa-se, por conseguinte, aos direitos
de segunda dimensão, que têm como modelo o Estado de Bem-Estar Social, no qual
se exige uma ação positiva por parte deste. Segundo Bobbio (1992), são os direitos
de liberdade, "através" ou "por meio" do Estado, no qual se
contempla um conjunto de direitos reconhecidos aos indivíduos no sentido de
lhes garantir condições materiais de existência compatíveis com a condição
humana e a capacidade de participar ativamente na vida social, com o propósito
de compensar as graves deficiências geradas pela hipertrofia liberal
(BONAVIDES, 1996, p. 187-191).
Com isso eles são caracterizados,
preponderantemente, pela prestação social por parte do Estado. Tais direitos
abrangem a saúde, a assistência social, a moradia, o trabalho, o lazer e a educação,
transcendendo a “liberdades formais abstratas” ao se tornarem “liberdades
materiais concretas” (SARLET, 2012, p. 47). No entanto, como ressalvado por Sarlet (2012, p. 48), os direitos de segunda dimensão não
se restringem aos direitos de cunho prestacional, mas
também as assim chamadas ‘liberdades sociais’ por ter havido o reconhecimento
dos direitos fundamentais aos trabalhadores - o direito de greve e a liberdade
de sindicalização, em resposta às reivindicações da classe trabalhadora.
Todavia, os dois modelos de Estado,
liberal e social, ainda que com premissas distintas, partilhavam, segundo Portanova (2004, p. 631), da mesma dogmática aos valores do
desenvolvimento da ciência e do domínio da natureza, assim como da crença na inesgotabilidade dos recursos naturais, permanecendo num
contínuo processo de degradação ambiental. Por esse ângulo, Sen
(2000, p. 9) assinala que
existem
problemas novos convivendo com antigos - a persistência da pobreza e de
necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas [...] e ameaças cada
vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida
econômica e social.
Portanto, essa racionalidade do capital
que preza pela maximização da exploração dos fatores de produção, ignorando as
externalidades sociais e ecológicas (LEFF, 1994, p. 292-293) acabam
por induzir ao questionamento da necessidade de se introduzirem reformas no
Estado que promulgassem um paradigma diferente da racionalidade econômica
tradicional.
2.3 Direitos de Terceira Dimensão
Essa geração de direitos tem como valor
essencial a fraternidade ou a solidariedade na busca da superação de um modelo
econômico predatório de exploração do homem pelo homem e da natureza, cuja
transcendência alcança a humanidade como um todo, exigindo ações tanto
negativas quanto positivas, agora não mais apenas do Estado, mas também da sociedade.
Cabe notar que Bonavides (2011, p. 569), testificando o pensamento, assinala que
um
novo polo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da
liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e
universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim
do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção
dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num
momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas
e juristas já os enumeram com facilidade, assinalando-lhe
o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira
da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre
temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e
ao patrimônio comum da humanidade.
Nessa acepção, aponta Fensterseifer (2008, p. 149) que a marca distintiva dos
direitos de terceira dimensão reside na sua natureza transindividual
e com titularidade muitas vezes indefinida e indeterminável. Por isso, enquanto
os direitos de primeira e segunda dimensões se
reportam à pessoa individual, os de terceira são de titularidade coletiva.
Todavia, esse caráter difuso ou a
universalidade dos direitos, longe de excluir os direitos de liberdade,
reforça-os, com os pressupostos de melhor condução diante da efetiva
materialização dos direitos de igualdade e fraternidade, mediante a importante
atuação dos novos sujeitos no exercício de uma cidadania participativa,
exigindo, a partir de então, novas técnicas de garantia e proteção.
Assim, entre os direitos de terceira
dimensão mais citados, destaca-se o direito ao desenvolvimento, à paz, à
autodeterminação dos povos, ao meio ambiente e qualidade de vida. Considerando
o recorte feito no presente estudo, dar-se-á ênfase ao direito ao meio ambiente
sadio para análise da questão proposta.
O direito ao meio ambiente, para Ferreira
Filho (2006, p. 62), é o mais elaborado dos direitos fundamentais de terceira
dimensão. No mesmo sentido, Bobbio (1992, p. 5) declarou que “o mais importante
deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num
ambiente não poluído”.
De fato, o reconhecimento do direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, tal como tem sido referido
frequentemente como direito de terceira dimensão, dá-se como resultado dos
novos enfrentamentos históricos de natureza existencial postos pela crise
ecológica (SARLET, 2014) que, cada vez mais, impactam a qualidade de vida e o
pleno desenvolvimento do ser humano.
Efetivamente, o caráter de fundamentalidade desse direito, segundo Medeiros (2004, p.
22), reside em sua imprescindibilidade a uma vida
saudável que, por sua vez, é essencial para que o ser humano viva com
dignidade.
Seguindo o mesmo raciocínio, Benjamin
(2012, p. 128) declara que a fundamentalidade do
direito se justifica por três razões: primeiro, por causa da estrutura
normativa do tipo constitucional (‘Todos têm direito...’);
segundo, porque o rol dos direitos e garantias fundamentais elencados no art.
5º da CRFB/88, de acordo com seu § 2º, não é exaustivo; e terceiro, porque,
sendo o meio ambiente uma base ecológica vital, que salva o próprio direito à
vida, o direito ao meio ambiente sadio torna-se materialmente fundamental.
Além do mais, como direito fundamental,
o direito ao meio ambiente não admite renúncia, alienação ou prescrição (SILVA,
1994, p. 166). Sendo assim, assentando-se no entendimento de que os direitos
fundamentais da pessoa humana compõem o núcleo normativo-axiológico da ordem
constitucional, assim como de todo o ordenamento jurídico, tem-se que o
princípio da dignidade humana representa, segundo Fensterseifer
(2008, p. 142), a norma-base do Estado de Direito.
Em decorrência disso, é importante
sublinhar que os elementos constitutivos para caracterizar uma vida digna
variam de acordo com cada sociedade e cada época, harmonizando-se,
consequentemente, com os direitos fundamentais que lhe são inerentes, razão
pela qual se deve ter em conta um horizonte normativo conceitual mutável e
materialmente aberto dos direitos fundamentais (FENSTERSEIFER, 2008, p. 144).
Cançado Trindade (1993, p. 73), ao analisar a
relação do direito ao meio ambiente sadio com outros direitos fundamentais,
ligando-o intrinsecamente ao direito a uma vida digna, afirma que considerado
em sua dimensão ampla, o direito fundamental à vida encerra o direito do ser
humano de não ser privado de sua vida, assim como de preservá-la, dispondo dos
meios apropriados para uma vida decente, o que demonstra cabalmente a
inter-relação e a indivisibilidade de todos os direitos humanos.
Com efeito, o referido doutrinador alega
que, a partir da ideia de um direito de viver condignamente, o direito ao meio
ambiente sadio configura-se como uma extensão do direito à vida, criando uma
conexão inerente entre eles (CANÇADO TRINDADE, 1993, p. 76), como se vê,
o
direito a um meio ambiente sadio salvaguarda a própria vida humana sob dois
aspectos, a saber, a existência física e saúde dos seres humanos, e a dignidade
desta existência, a qualidade de vida que faz com que valha a pena viver. O
direito ao meio ambiente, desse modo, compreende e amplia o direito à saúde e o
direito a um padrão de vida adequado ou suficiente.
Notadamente, a qualidade passa, então, a
integrar o conjunto de condições materiais (direitos fundamentais)
indispensáveis à vida digna e saudável, assim como a inserção
político-comunitária do indivíduo. Não há como se desvincular qualidade
ambiental da tutela da personalidade/dignidade humana, pois a existência de um
ambiente saudável e ecologicamente equilibrado representa uma condição
essencial para o pleno desenvolvimento da personalidade humana (SARLET, 2010,
p. 13).
Como diria Sendim
(1998, p. 36), “a vida situada em um quadro ambiental degradado compromete o
livre desenvolvimento da personalidade humana, especialmente no que diz
respeito à integridade psicofísica do ser humano”. A qualidade do ambiente em
que a vida se desenvolve contribui para o desenvolvimento da personalidade, o
que demonstra o elo vital entre a proteção do ambiente e os direitos da
personalidade.
Logo, percebe-se que a proteção
ambiental possui um teor ambivalente (LEITE; AYALA, 2003, p. 94), pois destina-se tanto à proteção do bem jurídico ambiental
autônomo quanto resguarda a dimensão individual subjetiva, principalmente no
que diz respeito ao dano causado ao indivíduo no desenvolvimento pleno de sua
personalidade em decorrência de condições existenciais impróprias causadas
também pela degradação ambiental. Em outras palavras, a titularidade individual
de um direito subjetivo não subverte o ambiente como bem jurídico coletivo
(BENJAMIM, 2012, p. 129).
Assim, tem-se que Leite e Ayala (2003,
p. 88) destacam a natureza dúplice do direito fundamental ao meio ambiente: a
dimensão subjetiva refere-se ao direito da personalidade de proteção contra a degradação
ambiental, direito esse que pode ser exercido individual ou coletivamente, mas
de forma solidária, por se tratar de um interesse difuso; daí a razão de se
falar em “direito-função”; e na perspectiva objetiva que está ligado ao dever
de proteção, cuja atribuição pertence ao Estado, a fim de, exemplificadamente,
“preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e promover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas” (art. 225, § 1º, I CRFB/88), bem como
“promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização
pública para a preservação do meio ambiente” (art. 225, § 1º, VI, CRFB/88). Essa responsabilização não exclui a
responsabilidade da coletividade, pois o dever de proteção é, também,
solidário.
A exigência de nova conformação estatal,
ou seja, o atual contexto de risco que tem sido experimentado pelas sociedades
contemporâneas, assim como a tomada de consciência da gravidade dos problemas
sociais que subsistem, mesmo diante das políticas liberais ou sociais implementadas, precipitou a necessidade de repensar os
próprios fundamentos do conceito de Estado de Direito.
Identifica-se, na história, um
amadurecimento da sociedade quanto à relevância não só da proteção ambiental
como bem jurídico e da importância da preservação para a sua própria
sobrevivência, mas, principalmente, da inserção e do reconhecimento da pessoa
como parte indissociável do meio ambiente que deve ser protegido. A partir dessa
compreensão, Bosselmann (2010, p. 109) enfatiza que
a
abordagem ecológica dos direitos humanos reconhece a interdependência dos
direitos e deveres. Os seres humanos precisam usar os recursos naturais, mas
também dependem completamente do ambiente natural. Isso torna as autorrestrições essenciais, não só em termos práticos, mas
também em termos normativos. Intitulações a recursos naturais e a um meio
ambiente saudável, utilmente expressadas em direitos, não podem mais ser
percebidas em termos puramente antropocêntricos. Os direitos humanos, como
todos os instrumentos jurídicos, precisam respeitar as fronteiras ecológicas.
Essas fronteiras podem ser expressas em termos éticos e jurídicos na medida em
que definem conteúdo e limitações de direitos humanos.
Nessa perspectiva, cabe questionar a
capacidade do Estado de Direito atual de lidar com os riscos advindos da crise socioambiental,
considerando-se o fato de que o Estado Social não conseguiu cumprir com suas
promessas de igualdade e não conteve a disseminação dos riscos ambientais.
Assim, considerando-se que as reformas
estatais guardam estreita relação com a teoria dos direitos fundamentais,
destacando-se que o Estado Liberal de Direito foi marcado pelos direitos
fundamentais de primeira geração, enquanto que o Estado Social de Direito foi
delineado pelos direitos de segunda geração, pergunta-se: qual o modelo de
Estado se poderia pensar para esta terceira dimensão?
2.3.1 A consagração da proteção ambiental na
constituição
A complexidade dos problemas ambientais
enfrentados na modernidade e as novas reivindicações das sociedades na
conjugação dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensões[8],
particularmente pela ênfase conferida à proteção do “macrobem
ambiental”[9],
tem sido um dos importantes vetores de mudanças comportamentais que fizeram
florescer uma preocupação ética e socioambientalmente
responsável, o que tem ensejado a configuração de um novo modelo de Estado
condizente com essa preocupação.
Consequentemente, a ideologia do
consumismo e a complexificação da crise ambiental,
pela introdução de novas tecnologias, toma hoje contornos de crise
multifacetária e global, com riscos de toda ordem e natureza (BENJAMIN, 2012,
p. 60). Essa realidade, que tem gerado um modo de vida desequilibrado, fora de
controle ou na iminência do descontrole, começou a ser percebida após a Segunda
Guerra Mundial.
Para Castells
(1999, p. 166), à
medida que o movimento ambientalista ingressou em um novo estágio de
desenvolvimento, a percepção ambiental foi consolidando o valor da vida em
todas as suas expressões, e esta noção conquistou gradativamente as mentes e as
políticas, sendo possível perceber uma evolução nas concepções de Estado por
meio dos projetos político-jurídicos.
Dessa forma, para suprir essa demanda,
foi preciso redefinir os fundamentos e a estrutura constitucional e
infraconstitucional até então vigentes, já que, antes, o meio ambiente não era
tutelado ou adequadamente tutelado em função da visão distorcida da inesgotabilidade de seus recursos naturais (BENJAMIN, 2012,
p. 109).
O direito - e especialmente o direito
constitucional - não podem quedar-se silentes em face dos problemas e desafios
apresentados pela crise ambiental. O Estado, por sua vez, compreendido como o
conjunto político de uma nação, não pode continuar viabilizando o crescimento
econômico e técnico-científico sem considerar as demandas ambientais e sociais
surgidas em torno da gestão de riscos (FERREIRA, 2008, p. 227).
Também o impulso revolucionário
constante da proteção ambiental em sede constitucional reside, segundo Leite e
Ayala (2004, p. 147), nas modificações processadas na postura assumida pelo
direito em face do ambiente, uma vez que se afastou,
substancialmente do modelo bilateral do Estado liberal.
Assim, a proteção e a promoção do
ambiente passam a despontar como novo valor constitucional, capaz de instituir
uma nova ordem pública e um novo programa jurídico-constitucional, pois, de
acordo com entendimento de Canotilho (2010, p. 31), o
Estado constitucional, além de ser um estado de direito democrático e social,
deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos.
No Brasil, apesar de as Constituições anteriores terem feito referência a alguns temas ambientais, nenhuma delas tratou de forma tão detalhada os direitos e deveres em relação ao meio ambiente como a CRFB/88.
Souza Filho (2011, p. 166), ao descrever
o processo constituinte da CRFB/88, asseverou que a incorporação de quatro[10]
temas no texto dessa Constituição, entre eles um
capítulo próprio para a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito de todos, demonstra uma verdadeira ruptura com os preceitos da
modernidade.
De acordo com o mencionado autor, a
modernidade e, consequentemente, o modelo de Estado e de direito foram
assentados na concepção privada e individualista. A partir do momento em que se
reconhece juridicamente os direitos coletivos e os
bens intangíveis de titularidade difusa, relativiza-se - mas não se exclui - o
conceito de direito individual e a cultura contratualista
ou constitucionalista do século XIX.
Diante disso, essa grande inovação
simboliza um valioso salto qualitativo das normas de proteção ambiental, ao
renunciar o enfoque utilitarista até então perseguido pela legislação, para
adotar uma direção mais protecionista do meio ambiente.
À vista disso, Benjamin (2012, p. 84-85)
destaca que a CRFB/88 sepultou o paradigma liberal ao assumir uma concepção
holística e juridicamente autônoma do meio ambiente, recepcionado de forma
sistêmica, mas igualmente constitucionalizado. Para o referido autor, saiu-se
do “estágio da miserabilidade ecológico-constitucional” para se alcançar a
“opulência ecológico-constitucional”. Almeida (2006, p. 56), por sua vez,
entende que
a
Constituição de 1988 representou uma ruptura paradigmática em relação à
tradição jurídica brasileira ao prever um Estado Democrático de direito, o qual
representa um plus normativo em relação às
fases/dimensões estatais anteriores, pois, além de incorporar os elementos
‘ordenador’ do Estado liberal e ‘promovedor’ do Estado social, trouxe para o
Estado uma nova função: a ‘transformação social’.
A CRFB/88 (BRASIL, 1988) no caput de seu art. 225,[11]
consagrou o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
assegurando-o como um direito difuso, de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, sendo, ao
mesmo tempo, imposto ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e de
preservá-lo para as presentes e as futuras gerações.
Nesse contexto, é indispensável que as
ações, em todas as esferas, sejam articuladas de forma
integrada (CANOTILHO, 2010, p. 36), adotando-se abordagens multidisciplinares
capazes de garantir um nível adequado de proteção ao meio ambiente, o que
pressupõe o valor de solidariedade, que será abordado com mais no próximo
tópico.
Ao tratar da ecologização
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Benjamim (2012, p.
90) destaca que ela reflete a “consolidação dogmática e cultural de uma visão
jurídica de mundo”, pois a Constituição foi precedida, acompanhada e
fortificada pela consagração da proteção ambiental no âmbito internacional,
para a garantia de uma vida digna e saudável, inclusive para as futuras
gerações (transgeracional).
Por consequência, a ecologização
da CRFB/88 marca a tríplice fratura do paradigma vigente (BENJAMIN, 2012, p.
85), seja pela diluição das posições formais entre credores e devedores, na
medida em que se atribui a todos, simultaneamente, o
direito e dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; seja pela
irrelevância de distinção entre sujeito estatal e sujeito privado condizente ao
dever de proteção; e finalmente, seja pelo enfraquecimento da separação
absoluta entre o objeto e os sujeitos da relação jurídica, tendo em vista a
característica de macro bem ambiental.
Entretanto, essa adoção
jurídico-constitucional, aos olhos de Leite (2012, p. 167), é mais avançada e
moderna porque a proteção ambiental deixa de ser pensada apenas em função do interesse
exclusivo do homem para estender-se às outras formas de vida, propugnando o
então chamado de antropocentrismo alargado:
a
Carta de 88 adotou o “antropocentrismo alargado” porque considerou o ambiente
como bem de uso comum do povo, atribuindo-lhe inegável caráter de macrobem, O art. 225 estabelece uma visão ampla de ambiente,
não restringindo a realidade ambiental a mero conjunto de bens materiais
(florestas, lagos, rios) sujeitos ao regime jurídico privado, ou mesmo público stricto sensu; pelo contrário, confere-lhe caráter de
unicidade e de titularidade difusa. Nessa perspectiva difusa de macrobem, o ambiente passa a possuir um valor intrínseco.
Portanto, ainda que, na CRFB/88, não se tenha
adotado o biocentrismo[12],
defendido pela ecologia profunda[13]
(Deep Ecology), visto que não se
verifica uma personalidade jurídica própria e independente da natureza e dos
animais não humanos, como sujeitos de direitos, há dispositivos que ultrapassam
o antropocentrismo clássico, conferindo valor intrínseco ao bem, a exemplo da
vedação a práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna e flora
(art. 225, VII, § 1º). Nesse sentido, o Papa Francisco (2015, p. 97-98) enuncia
que
Não
há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada
apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos de acaso ou de um
determinismo físico, ‘corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da
responsabilidade. Um antropocentrismo desordenado não deve ser substituído por
um ‘biocentrismo’, porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que
não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se
pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo
não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento,
vontade, liberdade e responsabilidade.
Essa nova construção constitucional dos
direitos fundamentais procura conciliar valores como dignidade da pessoa
humana, com necessidades ecológicas, alargando e conferindo valor autônomo de
proteção a todas as formas de vida. Ayala (2010, p. 333) qualifica esses
direitos como “biodifusos”, pois concebidos a partir
da harmonização entre valores humanos e não humanos, atribuindo-lhes igual[14]
posição de dignidade jurídica, tendo em vista que o fim último desses direitos
é a proteção jurídica da vida.
Com efeito, no marco de um
‘constitucionalismo ecológico’ insculpido na CRFB/88, imputou-se ao direito ao
meio ambiente o status de direito fundamental
individual e coletivo, consagrando a preeminência e proeminência[15]
necessárias a garantir-lhe a integração com todo o ordenamento jurídico.
Assim sendo, a incorporação dos valores
ecológicos no núcleo axiológico do sistema constitucional brasileiro, ocorrida
em decorrência da evolução histórica dos direitos fundamentais, em cada uma de
suas dimensões, assim como a passagem dos modelos de Estado de Direito,
justifica um novo modelo capaz de dar conta dos novos desafios existenciais
humanos. Consoante Fensterseifer (2008, p. 56), ao
novo modelo que incorpora em seu ordenamento jurídico os novos direitos
fundamentais de natureza transindividual dá-se o nome
de Estado Socioambiental de Direito, sobre o qual se discorrerá a seguir.
3 A INSERÇÃO DO Socioambiental NO ESTADO DE Direito – UM NOVO PARADIGMA
Ao tratarem das questões
socioambientais, Fernandes e Sampaio (2008) fizeram uma análise geral sobre o
significado de paradigma, a partir da obra de Thomas Kuhn. Para os esses
autores, a ciência e a sociedade são dinâmicas e interligadas. Por essa razão,
o paradigma científico não está desconectado do paradigma predominante na
sociedade, uma vez que a ciência produz e se reproduz para e a partir dessas
realidades naturais, culturais e sociológicas, motivo pelo qual não se deve falar
em processo linear das teorias que as aperfeiçoam mutuamente.
A par dessas breves considerações, os
autores Fernandes de Sampaio (2008) definem o paradigma como sendo
“um conjunto de valores e regras
socioculturais universalmente aceitos por algum tempo, em uma sociedade ou
grupo cultural, moldando e conduzindo as suas práticas” (FERNANDES; SAMPAIO,
2008, p. 89).
Tem-se, portanto, que os modelos ou
paradigmas não se prolongam infinitamente. Porém, de tempos em tempos, quando o
paradigma dominante não consegue responder adequadamente aos problemas por ele
gerados, surgem as alternativas ao modelo vigente.
No entanto, o paradigma atual de Estado e de sociedade, fundado na racionalidade econômico-científico-tecnológica, de cunho utilitarista e voltado para o consumismo desenfreado, está em crise, pois gerou uma série de problemas socioambientais que não é capaz de resolver.
Para Capella
(1998), a crise do paradigma atual é uma crise da relação homem/natureza, mas
numa complexidade muito mais ampla, cujo cerne está na sociedade e no modo de
vida essencialmente voltado para fins econômicos.
De acordo com Leite e Ayala (2004, p.
30) é evidente o esvaziamento da capacidade regulatória do Estado diante em um
mundo marcado pela desigualdade social e pela degradação ambiental em escala planetária.
Portanto, essa situação acabou por
precipitar um contramovimento (BECK, 2002), uma
cultura jurídica ambientalista adquirida pela constatação de finitude dos
recursos naturais, assim como da situação limite a que chegou a desigualdade
social e a falta de acesso aos direitos sociais básicos por parte da população.
Nessa lógica, é esclarecedor o posicionamento de Wolkmer
(2012, p. 17):
os
impasses e as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional
entreabrem, lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e a construção
de novos paradigmas, direcionados para uma perspectiva pluralista, flexível e
interdisciplinar. A teoria jurídica formalista, instrumental e individualista
vem sendo profundamente questionada por meio de seus conceitos, de suas fontes
e de seus institutos diante das múltiplas transformações tecnocientíficas,
das práticas de vida diferenciadas, da complexidade crescente de bens valorados
e de novas necessidades básicas, bem como da emergência de novos atores
sociais, portadores de novas subjetividades (individuais e coletivas). Desse
modo, as necessidades, os conflitos e os novos problemas colocados pela
sociedade no final de uma era e no início de outro milênio engendram também
‘novas’ formas de direitos que desafiam e põem em dificuldade a dogmática jurídica tradicional, seus institutos formais e
materiais e suas modalidades individualistas de tutela.
Para fazer face aos novos desafios, na
tentativa de superar o paradigma vigente, estabelece-se um novo modelo de
Estado que convirja a tutela dos direitos sociais e ambientais dentro de
padrões sustentáveis e a partir de uma perspectiva ampliada e integrada dos
direitos econômicos, sociais e ambientais (SARLET, 2014, p. 113).
Configura-se, então, a transição paradigmática ao projetar-se um novo modelo de Estado, denominado
por Sarlet (2010) como Estado Socioambiental de
Direito.
Porém, a edificação do Estado
Socioambiental de Direito não simboliza o marco zero (SARLET; FENSTERSEIFER,
2014) na construção dessa nova comunidade político-jurídica estatal, mas,
simplesmente, um passo a mais na caminhada em busca do respeito à dignidade da
pessoa humana e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, durante a
trajetória de amadurecimento da questão e conscientização socioambiental.
Embora abordando a mesma temática, mas
com uma terminologia própria, Leite (2007) considera que o Estado de Direito
Ambiental, assim como o é também o Estado Socioambiental de Direito, constitui
um conceito de cunho teórico abstrato, que abrange elementos jurídicos, sociais
e políticos na busca de uma condição ambiental capaz de favorecer tanto a
harmonia entre os ecossistemas quanto a garantia da plena satisfação da
dignidade para além do ser humano.
Independentemente da terminologia
utilizada por vários doutrinadores para identificar esse emergente modelo de
Estado, tais como o Estado Pós-Social (PEREIRA DA SILVA, 2012, p. 24; SARMENTO,
2003), o Estado de Direito Ambiental (LEITE, 2003, p. 32-54; CANOTILHO; LEITE,
2012; FERREIRA; LEITE, BORATTI, 2010), o Estado Constitucional Ecológico
(CANOTILHO, 2010), o Estado do Ambiente (HABERLE, 2005, p. 128), Estado
Ambiental (KLOEPFER, 2010), o Estado de Bem-Estar Ambiental (PORTANOVA, 2004,
p. 638) e o Estado Sustentável (FREITAS, 2011, p. 278), e ainda que não adentrando o debate sobre eventuais diferenças substanciais
entre a concepção de Estado adotada por cada autor, verifica-se que o ponto
nodal que une a todos é a preocupação em atender ou responder satisfatoriamente
às demandas geradas pela crise ambiental e social que foi deflagrada pelo
esgotamento do modelo industrial e de consumo hedonista predatório vigente.
Sarlet e Fensterseifer
(2014, p. 46) ressaltam que o Direito deve posicionar-se em relação às novas
ameaças que fragilizam, quer sejam os valores e os princípios do Estado
Democrático de Direito, quer seja a sobrevivência e a qualidade de vida humana
e não humana, afim de salvaguardar o equilíbrio e a segurança
nas relações socioambientais.
Para isso, no que se refere ao contexto
político, o objetivo do Estado contemporâneo não pode ser considerado como
pós-social (SARLET, 2010, p. 16), tendo em vista que os direitos de segunda
geração - os direitos fundamentais sociais - não estão plenamente cumpridos, já que parte da população mundial ainda
se encontra desprovida de acesso aos seus direitos sociais fundamentais.
Assim sendo, Fensterseifer
(2008, p. 27) enuncia que
o
novo modelo de Estado de Direito objetiva conciliar os direitos liberais, os
direitos sociais e os direitos ecológicos num mesmo projeto jurídico-político
para a comunidade estatal e o desenvolvimento existencial do ser humano. Tal
redefinição conceitual do Estado de Direito contemporâneo justifica-se em face
das mudanças ocorridas em função desta sua orientação ecológica, assumindo o
Estado, portanto, o papel de ‘guardião’ dos direitos fundamentais diante dos
novos riscos e violações existenciais a que está exposto o ser humano hoje.
Segundo o mencionado autor, a dimensão
social e a dimensão ambiental são elementos integrantes do núcleo essencial do
princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista a incorporação dos novos
valores humanos ao princípio[16],
razão pela qual somente um modelo de Estado que contemple,
de forma conjunta, essas dimensões poderá ser condizente com a condição
existencial humana digna albergada na Lei Fundamental - a CRFB/88.
Diante dos eventuais conflitos entre
direitos fundamentais de diferentes dimensões Pereira da Silva (2002, p. 28),
independentemente de estar usando a terminologia de Estado de Direito
Ambiental, alerta para a seguinte questão:
os
valores ético-jurídicos da defesa do ambiente não esgotam todos os princípios e
valores do ordenamento jurídico, pelo que a realização do Estado de Direito
Ambiental vai obrigar à conciliação dos direitos fundamentais em matéria de ambiente com as demais posições
jurídicas subjetivas constitucionalmente fundadas, quer se trate de direitos de
primeira geração, como a liberdade e a propriedade, quer se trate de direitos
fundamentais de segunda geração, como os direitos econômicos e sociais (o que,
entre outras coisas, tem também como consequência que a preservação da natureza
não significa pôr em causa o desenvolvimento econômico, ou ironizando, não
implica o ‘retorno à Idade da Pedra’).
Por conseguinte, o Estado Socioambiental
de Direito tem a missão e o dever constitucional de atender ao comando
normativo do art. 225 da CRFB/88, de forma a cumprir, integral e interdependentemente, os direitos sociais e ambientais em
um mesmo projeto político-jurídico para o desenvolvimento sustentado. Tal
desígnio atenta também à necessidade de corrigir o quadro de desigualdade e de degradação
humana em termos de acesso a uma vida digna e saudável, em um ambiente
equilibrado e seguro (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 68).
Essa conformação se encontra em perfeita
harmonia com o projeto normativo proposto pela CRFB/88, de: erradicar a pobreza
e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, I e III); estabelecer uma ordem
econômica sustentável (art. 170, VI); e assegurar o
direito e o dever ao meio ambiente equilibrado.
Por essa razão, os direitos
socioambientais, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas,
têm caráter pluralista, coletivo e indivisível, e impõem novos desafios à
ciência jurídica por não se enquadrarem nos estreitos limites do dualismo
público-privado, inserindo-se dentro de um espaço público não estatal que
enseja a participação pública.
A partir dessa nova visão, regras constitucionais e
infraconstitucionais foram instituídas, rompendo com os paradigmas da dogmática
jurídica tradicional, para garantir, mediante ações e políticas públicas, a
proteção de bens socioambientais.
Para esse novo paradigma, a ideia de
progresso e desenvolvimento só fazem sentido se vista
sob a perspectiva da sustentabilidade que integre as dimensões econômica,
social e ambiental de uma forma dinâmica, dialética e não hierarquizada.
Na mesma quadra, Guibentif
(apud ARNAUD; JUNQUEIRA, 2006, p. 180) destaca que o Estado deixa de ser a referência
fundamental como debitor
de direitos humanos e sociais. A referência, agora, é “fornecida pela noção de
‘cidadania’ que exprime a experiência da capacidade de mobilização, de
investimento institucional e de solidariedade susceptível de se atualizar em
qualquer coletividade humana”.
De uma forma concisa e didática, Sarlet (2010, p. 19), seguindo o entendimento adotado por Canotilho (2003), estabelece que o Estado Socioambiental de Direito
contemporâneo apresenta as seguintes dimensões
fundamentais, integradas entre si: juridicidade, democracia, sociabilidade e
sustentabilidade ambiental.
Sendo assim, a qualificação desse modelo
de Estado, segundo o mencionado autor, traduz-se em, pelo menos, duas dimensões jurídico-políticas relevantes: a) a
obrigação do Estado, em cooperação com outros Estados e sociedade civil, de
promover políticas públicas pautadas pelas exigências da sustentabilidade
ecológica, e b) o dever de adoção de comportamentos públicos e privados amigos
do ambiente, dando expressão concreta à assunção da responsabilidade dos poderes
públicos perante as gerações futuras, mas sem descurar da necessária partilha
de responsabilidades entre o Estado e os atores privados na consecução do
objetivo constitucional da tutela do ambiente.
Com isso, a edificação do novo paradigma
de um Estado Socioambiental de Direito parece uma utopia, tendo em vista o
antagonismo existente entre sistema de produção de capital e de consumo
vigente, a finitude dos recursos naturais e as desigualdades sociais
constatadas. No entanto, Santos (2010, p. 43-44), a partir de um olhar realista
sobre a utopia esclarece:
a
única utopia realista é a utopia ecológica e democrática. A utopia ecológica é
utópica porque a sua realização pressupõe a transformação global, não só dos
modos de produção, mas também do conhecimento científico, dos quadros de vida,
das formas de sociabilidade, e dos universos simbólicos e pressupõe, acima de
tudo, uma nova relação paradigmática com a natureza, que substitua a relação
paradigmática moderna. É uma utopia democrática porque a transformação a que
aspira pressupõe a repolitização da realidade e o
exercício radical da cidadania individual e coletiva, incluindo nela a carta
dos direitos humanos da natureza. É uma utopia caótica porque não tem um
sujeito histórico privilegiado. Os seus protagonistas são todos os que, nas
diferentes constelações de poder que constituem as práticas sociais, tem
consciência de que a sua vida é amis condicionada pelo poder que outros exercem
sobre eles do que pelo poder que exercem sobre outrem. Foi a partir da
consciência da opressão que nas últimas décadas se formaram os novos movimentos
sociais.
Corroborando o mesmo raciocínio,
Ferreira (2008), embora não utilizando a mesma terminologia para o modelo de
Estado - que, entretanto, se ajusta ao Estado Socioambiental de Direito -
destaca que a proposição de um novo modelo estatal ambientalmente orientado
recusa o fechamento do horizonte de perspectivas, possibilita a visualização de
alternativas e rejeita a subjetividade do conformismo.
Aliás, o que se percebe na CRFB/88 e,
consequentemente, nesse pretenso modelo de Estado Socioambiental de Direito, é
que a colocação de ideais, a princípio considerados utópicos, deve ser encarada
como verdadeiras normas programáticas da CRFB/88.
Por fim, os avanços ético-jurídicos
(BENJAMIN, 2012) firmados na CRFB/88 ao estabelecer-se o tratamento
jurídico-holístico da natureza, ao garantir-se o equilíbrio ecológico e a
qualidade de vida para as presentes e as futuras
gerações, assim como a todas as formas de vida, devem ser empoderados
não só pelo Estado, mas por toda a sociedade, de forma solidária, participativa
e plural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual contexto de risco que tem sido
experimentado pelas sociedades contemporâneas, assim como a tomada de
consciência da gravidade dos problemas sociais e ambientais que subsistem,
mesmo diante das políticas liberais ou sociais implementadas,
têm sido importantes vetores de mudanças comportamentais que fizeram florescer
uma preocupação ética e socioambientalmente
responsável.
Percebe-se que esse contexto traz
consigo uma nova dimensão de direitos fundamentais - chamada de terceira
dimensão - a qual impõe a todos o desafio de inserir, entre as suas tarefas
prioritárias, a proteção do meio ambiente.
Entretanto, identifica-se um amadurecimento
da sociedade quanto à relevância não só da proteção ambiental como bem
jurídico, e da importância da preservação desse para a
sua própria sobrevivência, mas, principalmente, da inserção e do reconhecimento
da pessoa como parte indissociável do meio ambiente que deve ser protegido,
tendo em vista a imprescindibilidade da humanidade. No entanto, não haverá uma
nova relação com a natureza sem uma nova antropologia mais expandida.
Essas novas demandas impõem uma análise
do contexto da crise socioambiental de forma multidimensional, mediante a observação
do ser humano pertencente ao meio ambiente como um todo, numa relação
indissociável de interdependência e transversalidade. Assim, não são dois
problemas distintos, cujas soluções possam ser buscadas separadamente. A visão
socioambiental enseja uma abordagem genuinamente harmônica, sincrônica e
equilibrada para obter resultados capazes de beneficiar a todos - homem e
natureza - a partir da qual indivíduo e comunidade se veem como
inter-relacionados e interdependentes na busca pela concretização de uma vida
humana digna e com qualidade ambiental a todos os seus membros.
A incorporação dos valores ecológicos no
núcleo axiológico do sistema constitucional brasileiro, ocorrida em decorrência
da evolução histórica dos direitos fundamentais em cada uma de suas dimensões,
assim como a passagem dos modelos de Estado de Direito, justifica, então, um
novo modelo capaz de dar conta dos novos desafios existenciais humanos.
Ao novo modelo que incorpora em seu
ordenamento jurídico a convergência da tutela dos direitos sociais e ambientais
dentro do mesmo projeto político-jurídico, a partir de uma perspectiva ampliada
e integrada dos direitos econômicos, sociais e ambientais, pautada em padrões
sustentáveis, dá-se o nome de Estado Socioambiental de Direito.
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Artigo recebido em: 17/02/2017.
Artigo
aceito em: 09/05/2017.
Como citar este artigo (ABNT):
KALIL, Ana Paula Maciel Costa; FERREIRA, Heline
Sivini. A Dimensão Socioambiental do Estado de
Direito. Revista Veredas do Direito, Belo
Horizonte, v. 14, n. 28, p. , jan./abr. 2017.
Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/1010>.
Acesso em: dia mês. ano.
[1]
Pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto ‘Caracteres do Constitucionalismo
Andino no Estado Socioambiental de Direito’, aprovado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital MCTI/CNPQ/Universal 14/2014).
[2]Expressão
cunhada por Vasco Pereira da Silva na obra Verde cor de direito:
lições de Direito do ambiente, ao tratar do esverdeamento
da Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, assim como da ordem
jurídica como um todo.
[3]O
Instituto Socioambiental - ISA - é uma organização da sociedade civil
brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções, de
forma integrada, a questões sociais e ambientais, com foco central na defesa de
bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao
patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos.
[4]Quando
se usa o termo “direito”, não se está levantando questões de fundo filosófico,
mas sim de natureza deontológica, o que significa dizer que se trata de um
sistema normativo reconhecido e aplicável em um determinado momento histórico.
[5]Para
compreender a origem, a natureza e o mapa evolutivo dos Direitos Fundamentais
ao longo dos tempos, ver, entre a farta literatura a respeito do tema: ALEXY, 2008;
COMPARATO, 2001; BOBBIO, 1992; BONAVIDES, 2011; LUNÕ, 2005; CANÇADO TRINDADE,
1997, entre outros.
[6]Há
autores que defendem a existência de uma quarta e até mesmo de uma quinta
dimensão dos direitos fundamentais, classificando-os como “novos” direitos
fundamentais, sendo eles, respectiva e não exclusivamente: BONAVIDES, 2011;
OLIVEIRA JUNIOR, 2000; SÁNCHEZ RUBIO, 2009.
[7]Nesses
termos consultar também: BONAVIDES, 2011, p. 516 -518; SARLET, 2012, p. 48-49.
[8]Considerando,
ainda, aqueles tidos de quarta e quinta dimensões, ainda que não reconhecidos
institucionalmente.
[9]Morato
Leite destaca que a legislação pátria conferiu ao meio ambiente a conotação de
macrobem por ter adotado uma visão globalizada e integral, caracterizando-o,
portanto, como amplo, de natureza imaterial, indivisível e difuso, não obstante
também existir o microbem, entendido como todos os
bens que compõem o meio ambiente.
[10]Além
do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos,
protegido para as presentes e futuras gerações (art.
225, CRFB/88), Marés destaca o reconhecimento a cada povo o direito à própria
existência (arts. 231 e 232, CRFB/88); a preservação
do patrimônio cultural brasileiro (arts. 215 e 216,
CRFB/88) e a função social da propriedade (arts. 185
e 186, CRFB/88).
[11]Todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
[12]Nesse
prisma, importante destacar o avanço no horizonte normativo sem precedentes no
constitucionalismo contemporâneo, considerando sua perspectiva mais próxima do
que se poderia denominar de um paradigma jurídico biocêntrico,
a partir do novo constitucionalismo latino-americano, ao estabelecer o
reconhecimento dos direitos da natureza. O constitucionalismo, na América
Latina, recebe nova linha da promulgação das constituições da Venezuela (1999),
Equador (2008) e Bolívia (2009). Alguns autores, a propósito, sustentam que essas
três Constituições formaram as bases do “novo constitucionalismo
latino-americano”. Da análise dos novos textos constitucionais, especialmente
das Constituições da Bolívia e do Equador, observa-se que, partindo do
constitucionalismo clássico europeu, as novas Constituições procuram “avançar”,
sobretudo, no que se refere à proteção ambiental e ao pluralismo cultural e
multiétnico, conformando um modelo garantista que
mira a sustentabilidade socioambiental: buscando equilibrar o uso dos recursos
econômicos e ambientais e valorizar a diversidade histórico-cultural em favor
de um modelo socioeconômico voltado a uma melhor qualidade de vida; o bem vivir, ou sumak kawsay
(Constituição do Equador) e suma qamaña
(Constituição da Bolívia). A Constituição da Venezuela é composta por 350
artigos, a da Bolívia tem 411 artigos e do Equador 444 artigos. Cf. FERNANDEZ
SEGADO, 2003, p. 471; CARBONELL, 2009.
[13]Conceito
proposto pelo filósofo e ecologista norueguês Arne Næss, em 1973, a Ecologia Profunda apresenta um novo
paradigma de percepção de mundo, a partir de uma visão holística em que a
humanidade é apenas como mais um fio na teia da vida. A partir dessa visão,
cada elemento da natureza, inclusive a humanidade, possui seu valor intrínseco,
devendo ser respeitado e preservado para garantir o equilíbrio do sistema da
biosfera.
[14]Segundo
referido autor, não se trata de atribuir juridicidade a pretensos direitos que
tenham por sujeito a própria natureza,
personificando-a. Trata-se de atribuir-lhe consideração jurídica, compreendida
como bem jurídico. “A natureza possui dignidade jurídica na qualidade de bem
ambiental, porque, como centro de imputação,
é também considerada posição ou qualidade jurídica
fundamental e beneficiaria de atividades de garantia.”
[15]De
acordo com Canotilho e Moreira (1984, p. 38-39),
preeminência significa a superioridade e posição hierárquica da regra
constitucional, sujeitando o ordenamento jurídico que lhe é inferior; enquanto
que proeminência significa visibilidade máxima desta regra. Nesse sentido,
Benjamim (CANOTILHO; LEITE, 2012, p. 83-156) destaca que: a
preeminência e a proeminência do texto constitucional traduzem-se, no campo
prático, em inequívoco valor didático. Estar o meio ambiente lá, no lugar mais
elevado na hierarquia jurídica, serve de lembrança permanente de sua posição
dorsal entre os valores indisponíveis da vida em comunidade.
[16]Outras
concepções de modelo de Estado também comungam da mesma ideia. O que as
diferencia é o fato de considerarem a dimensão social como intrínseca à
dimensão social. No mesmo sentido, ver: LEITE; FERREIRA, 2010, p. 13.