DOI: http://dx.doi.org/10.18623/rvd.v14i28.920
QUEBRADEIRAS
DE COCO: “BABAÇU LIVRE” E RESERVAS EXTRATIVISTAS[1]
BABAÇU
BREAKER WOMEN: "FREE
BABASSU" AND EXTRACTIVE RESERVES
Joaquim Shiraishi Neto
Doutor em Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará
(UFPA).
Professor do Programa de Pós-graduação em Direito e
Sistemas de Instituição de Justiça da Universidade Federal do Maranhão
(PPGDIR-UFMA).
Pesquisador FAPEMA e CNPQ. Bolsista Visitante
FAPEMA.
Email:
jshiraishi@uol.com.br
Resumo
Desde a sua constituição, no início da década
de 1990, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu - MIQCB -
vem discutindo medidas para pôr fim ao processo de devastação dos babaçuais e
para garantir o livre acesso e o uso comum das palmeiras. Nas discussões sobre
as garantias do livre acesso às palmeiras de babaçu, prevaleceram as propostas
das leis do “babaçu livre” e das reservas extrativistas. Enquanto a primeira
proposta é fruto das reivindicações do próprio movimento, a segunda decorre da
luta dos seringueiros do Acre, incorporada ao Sistema Nacional de Unidades de
Conservação - SNUC. Assim, este artigo objetiva refletir sobre a luta pela
garantia de acesso e de uso comum dos recursos naturais a partir da experiência
das leis do “babaçu livre” e das reservas extrativistas. Para cumprir o
objetivo proposto, a metodologia utilizada baseou-se em técnicas de observação
direta e em entrevistas semiestruturadas junto às lideranças do Movimento das
Quebradeiras. Embora o movimento tenha várias leis que asseguram os direitos ao
livre acesso, tais instrumentos legais vêm sendo desrespeitados.
Palavras chave: Novos movimentos
sociais. Quebradeiras de coco. Uso comum. Babaçu livre. Reservas extrativistas.
Abstract
Since its establishment in the early 1990s, the Babaçu Breaker Women Movement - MIQCB - has been discussing measures
to end the process of devastation of babaçuais, as
well as ensuring free access and common use of palm trees. In the discussions
on the guarantees of free access the babassu palm
trees prevailed the proposals of the laws of
"free babaçu" and extractive reserves.
While the first is the result of the demands of the movement itself, the second
one stems from the struggle of the rubber tappers of Acre, incorporated into
the National System of Conservation Units - SNUC. Thus, this article aims to
reflect on the struggle to guarantee access and common use of natural resources
based on the experience of the "free babaçu"
laws and extractive reserves. In order to fulfill the proposed objective, the
methodology used was based on techniques of direct observation and
semi-structured interviews with the leaders of the Babaçu
Breaker Women Movement. Although the movement has achieved several laws, which
guarantee the rights to free access, these legal instruments have
been disregarded.
Keywords: New
social movements. Babaçu breaker women. Common use. Palm free. Extractive reserves.
Introdução
Ao longo de sua
existência, as coordenações do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Babaçu - MIQCB - sempre se empenharam em compreender os processos nos quais se
encontravam inseridas, bem como as tramas urdidas pelo direito (em especial, o
Direito Ambiental e Agrário) de modo a propor ações, medidas e instrumentos
jurídicos capazes de promover a preservação dos recursos naturais e garantir o
livre acesso e uso comum das áreas de ocorrência de babaçu. No Estado do
Maranhão, por exemplo, a política agrária contribuiu, de maneira legal e
ilegal, com o processo de expropriação das quebradeiras de coco e suas famílias
de suas terras tradicionalmente ocupadas. Os efeitos da chamada Lei de Terras
do Sarney (Lei n. 2.979, de julho
de 1969), que disponibilizou as terras devolutas do Estado,
ocupadas pelas quebradeiras de coco e
suas famílias, às empresas agropecuárias e pecuaristas (ALMEIDA; MOURÃO, 1979),
facilitou o processo de “grilagem”[2]
e a concentração das terras.
Ainda no início da
organização do movimento, em uma atividade da coordenação ficaram evidentes as
distintas situações econômicas que envolviam as famílias de quebradeiras de
coco. Na sua maioria, as quebradeiras de coco estão na condição de “sem terra”,
isto é, não têm acesso direto à terra, residindo nas
chamadas “pontas de rua” das cidades
e povoados ou nas “beiras das estradas”, entre a faixa das rodovias e das
cercas das fazendas.
As quebradeiras de coco com acesso à terra garantido - “com terra” -
representam uma minoria no contexto do movimento. Trata-se daquelas situações
de áreas desapropriadas pelo INCRA, áreas regularizadas pelos institutos de
terras estaduais ou mesmo adquiridas. As posses consolidadas há anos, terras de
herança partilhadas, também se enquadram nessa situação. No entanto,
ressalta-se que as quebradeiras de coco “com terra” nem sempre dispõem, em suas
terras, das palmeiras de babaçu, o que faz com que elas adentrem outras áreas
para a coleta do babaçu.
Diante da condição a
que foram submetidas as quebradeiras, o MIQCB
incorporou, na sua agenda de luta, dois problemas centrais, que se relacionam
com as garantias de reprodução física e cultural, quais sejam: pôr fim às
derrubadas de palmeiras e garantir o livre acesso e o uso comum das áreas de
ocorrência de babaçu, condição preexistente à apropriação e ao cercamento das terras tradicionalmente ocupadas. Para as quebradeiras
de coco, “o livre acesso é aquele que a cancela não tem um cadeado, que o
colchete não tem cadeado, esse pra nóis é o livre
acesso.” (Enxerto da entrevista de Maria Alaídes,
Lago dos Rodrigues, maio de 2015).
Assim, este artigo
objetiva refletir sobre a luta pela garantia do livre acesso e sobre o uso
comum dos recursos naturais a partir da experiência das leis do “babaçu livre”
e da reserva extrativista. Enquanto a ideia do “babaçu livre” originou-se no
contexto do movimento das quebradeiras de coco, a reserva extrativista, embora
idealizada pelos seringueiros da Amazônia, especialmente do Acre, foi
incorporada à luta após ter sido criada pelo governo federal, que, em 1992,
decretou a criação de 4 reservas extrativistas na
região.
1 A Emergência do Movimento das Quebradeiras de Coco
Babaçu
O Brasil tem vivido um
processo interessante nas últimas décadas, que se relaciona com a emergência de
“novos movimentos sociais” e com o processo de reconhecimento jurídico dos
diversos grupos designados pelos dispositivos legais de povos e comunidades
tradicionais. Trata-se dos povos indígenas e povos quilombolas, das comunidades
de seringueiros, de castanheiros, de açaizeiros, de catadoras de mangaba, entre
tantos outros grupos...
O conteúdo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[3] e a promulgação da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT - pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004 evidenciam a força desses movimentos, que até então se encontravam “invisíveis” às políticas de pretensão universal. A Convenção n.169 da OIT, que é de 1989, estabeleceu, como critério fundamental de identificação, a autodefinição; assim é o próprio sujeito que diz de si mesmo em relação ao grupo ao qual pertence. Tal critério permitiu reforçar a lógica dos movimentos orientados pelos critérios de identidade étnica e coletiva. Sublinha-se que a maioria dos grupos estavam subordinados à categoria de “trabalhadores extrativistas”[4], cujas atividades eram disciplinadas pelo chamado Estatuto da Terra - Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964.
É em um contexto de
intensa mobilização política contra a apropriação privada e exclusiva dos
territórios, com desmatamentos generalizados dos recursos naturais, que emerge
o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu - MIQCB.
A atividade extrativa
do babaçu é realizada predominantemente por mulheres, embora tenha a
participação dos homens em determinados momentos. É uma atividade considerada
secundária, cuja safra coincide com a entressafra da chamada roça. A atividade do babaçu, que é aproveitado
integralmente pelas famílias, não se restringe à coleta, à quebra e à venda das
amêndoas. A fala de dona Dió - transcrita adiante -
bem expressa a importância do babaçu para a economia
das famílias:
Então, ele (o
babaçu) é uma grande importância, porque dele a gente tira a sustentabilidade. Eu lembro que a minha mãe, nós
morávamos numa casa que ela era de palha, de babaçu, e tanto era em cima como embaixo,
tudo fechado e as portas era uma esteira de babaçu. Então pra mim ela tem uma
utilidade tão grande que ela serve pra gente em tudo, ela dá a vida pra quem
não tem, sabe, ela deu a vida pra nois porque do
babaçu vem a amenda pra gente fazer azeite, pra temperar a comida, o leite pra
temperar a comida também o leite, a casa você fazer o carvão pra cozinhar, a
palha faz o “pacará” pra gente cortar arroz, panhar
feijão, botar dentro, sabe, é tudo. E a palmeira quando dá raio que cai na
palmeira e ela morre bate no chão, num demora tempo ela dá o adubo, a gente
bota numa cebola, é vida, a palmeira dá é a vida. E uma palmeira pra mim, eu comparo ela como uma mãe de família. (Entrevista com Diocina
Lopes, dona Dió, Lago dos Rodrigues, maio de 2015 -
grifos nossos).
Ainda crianças, os
filhos e as filhas menores de quebradeiras de coco caminham com suas mães para
a “caça do coco”: “Quando eu me entendi, já foi andando nos mato mais ela. Era
na roça, era na quebra do coco.” (Enxerto da entrevista de Diocina
Lopes, dona Dió, Lago dos Rodrigues, maio de 2015).
Aprendem desde cedo os significados do babaçu nas suas vidas, bem como as
condições adversas em garantir a sua prática, ironicamente, na “terra das
palmeiras”. As crianças veem como suas mães se “embrenham” nas matas, às vezes
varando as cercas de arame farpado, escondidas, para juntar e quebrar o coco babaçu, sujeitas à sorte de todo tipo de violência.
O árduo dia de trabalho
é recompensado com os rendimentos, que permitem às mulheres a aquisição de produtos
básicos (açúcar, café, sardinha...) para suprir as necessidades mais imediatas.
Em outros momentos, os resultados são destinados ao pagamento de imprevistos,
como os problemas de saúde na família, ou mesmo na compra de pequenos bens,
como peças de vestuário às crianças.
Para as quebradeiras,
ter rendimento oriundo da coleta e quebra do coco lhes garante uma maior
autonomia, pois, com o recurso, podem definir melhor a maneira como gastá-lo,
ficando menos sujeitas a seus próprios companheiros.
Independentemente dos contextos sociais, econômicos e culturais em que se
encontram inseridas, tais propostas, que envolvem o direito de possuir seus
próprios recursos, têm um enorme valor para as mulheres. Mesmo em uma sociedade
como a norueguesa - de Estado providência forte, chamam a atenção, na teoria
jurídica feminista, as discussões em torno do “direito das mulheres ao
dinheiro”. O direito a ter um rendimento é uma das condições primeiras para que
as mulheres possam usufruir da vida com liberdade (DAHAL, 1993).
A importância do babaçu
para essas mulheres faz com que elas tenham um cuidado e um sentimento especial
em relação às palmeiras, que são chamadas pelas quebradeiras de “árvore mãe”[5],
pois garantem a sobrevivência de toda a comunidade. Como uma mãe, a palmeira
distribui igualmente os seus frutos, independentemente da condição dos filhos.
Tal compreensão da
natureza, ligada à conservação, rompe com os modelos hegemônicos baseados no
controle das pessoas sobre os recursos, a bem dos processos de acumulação de
capital. As teorias ecofeministas (MIES; SHIVA, 1993)
auxiliam-nos a compreender melhor essa intensa relação das quebradeiras de coco
com as palmeiras. Para essas teorias, que articulam as reflexões sobre gênero e
meio ambiente, o sistema capitalista floresceu “colonizando” as mulheres, as
terras e a natureza. Nos diversos contextos analisados pelas autoras
supramencionadas, ficou certo que as mulheres são as
maiores afetadas pelos impactos dos projetos de desenvolvimento/crescimento,
sobretudo quando esses causam destruição da natureza. Por isso, as mulheres são as primeiras a se
organizar e a protestar contra a destruição dos recursos naturais.
À sua maneira, os
relatos evidenciam o protagonismo das mulheres na luta contra as derrubadas de
palmeiras. À sua forma, as quebradeiras realizaram
os primeiros “empates” no final da década de 1980, tal como a luta dos
seringueiros contra a derrubada dos seringais no Acre. Em “mutirões”, as mulheres, com outras
mulheres e crianças, se juntam para impedir a derrubada de palmeiras de babaçu.
Dona Maria Alaídes assim descreveu o que designou
como “mutirão”:
Se juntava em mutirão, articulava o horário sem ninguém
saber, não era público a nossa articulação...
Nois dizia entre nois: vamos lá que a
gente vai precisar e se a gente deixar eles acabarem a
gente não tem prá onde ir, e aqui ainda não tem uma fonte de renda onde
sustenta a gente que não seja o babaçu.
A gente pedia.
Às vezes ele tava com um trator enorme, nois pegava nas mão uma das outras e ia pra frente e pedia pra eles não
fazer aquilo, que a gente vivia era daquilo, mostrava o tanto de filho que a
tinha pra criar e que a gente não tinha outra fonte de renda. E eles começava a dizer: pra que que vocês deixaram
engravidar, vocês não querem comprar televisão, não!? Pra ir assistir pra
deixar de engravidar, de tanto menino pra botar no mundo pra não ter como
criar. Aqui eu tô cumprindo é ordem, eu não vou fazer
a vontade de vocês não. (Entrevista com Maria Alaídes,
Lago dos Rodrigues, maio de 2015 - grifos nossos).
A partir de situações
concretas que envolvem a luta contra as derrubadas de palmeiras, as
quebradeiras de coco se organizaram para enfrentar os problemas localizados
relacionados à devastação dos babaçuais, que ameaçavam a sua reprodução física
e cultural. Em diversos locais, receberam distintos apoios, cabendo destacar as
pastorais ligadas à Igreja Católica e as organizações não governamentais. No
contexto do processo de organização, as quebradeiras passaram a reivindicar a
ocupação de espaços políticos, geralmente dominados por homens.
A participação em
espaços políticos e o grau de conscientização logrado nas lutas fizeram com que
as quebradeiras de coco passassem a se preocupar em articular-se com outros
grupos de mulheres que também viviam situações semelhantes àquelas enfrentadas
nos babaçuais. Acionando critérios de gênero e ecológicos, associados a uma
prática jurídica, que disciplina o acesso e uso comum dos recursos naturais, as
quebradeiras de coco vão se constituindo enquanto grupo social de identidade[6].
A ambientalização
da luta (LOPES, 2004) das quebradeiras potencializou o seu discurso como grupo
social quando elas deixaram de ser estereotipadas para se deslocarem ao centro
político dos debates, isto é, quando se tornaram protagonistas por sua
consciência ecológica e por sua luta. No início da década de 1990, iniciou-se o
processo de organização das mulheres, que se constituiu no Movimento
Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu - MIQCB.
A constituição do MIQCB
contribuiu com a organização da agenda de luta das quebradeiras de coco, que,
desde a sua emergência, vem priorizando as questões ligadas à devastação dos
recursos naturais e às garantias do livre acesso e uso comum das palmeiras de
babaçu. No contexto do processo de organização e luta do movimento, as leis do
“babaçu livre” ganharam força, ocupando a agenda política do MIQCB.
2 As Leis do “Babaçu Livre”
Desde a sua
constituição, o MIQCB vem discutindo formas para a garantia do acesso e do uso
comum dos recursos naturais. Os debates em torno dessa necessidade evoluíram na
direção da discussão, da formulação e da proposição de um projeto de lei à
Câmara dos Deputados, apresentado por parlamentares próximos ao movimento.
O Projeto de Lei n. 1.428,
de 1996, tramitou regularmente na Câmara e foi arquivado por força regimental.
O mesmo projeto foi reapresentado outras três vezes,[7]
não logrando aprovação.
As enormes dificuldades sentidas em torno da aprovação do projeto fizeram com
que o movimento adotasse uma outra estratégia, com a
apresentação da proposta às câmaras municipais e, posteriormente, às
assembleias legislativas[8].
Tal estratégia de promover a “luta jurídica localizada” (SHIRAISHI NETO, 2011)
é uma particularidade de diversos movimentos sociais do Brasil. Ela se
distingue de outros contextos, que têm privilegiado formas mais abrangentes de
reivindicação, a exemplo do Equador e da Bolívia, que promulgaram novas
constituições reconhecendo amplos direitos aos povos indígenas e aos afrodescendentes.
Nesse contexto, a
primeira lei municipal aprovada pelo movimento foi a Lei n. 05/97, no Município
de Lago do Junco. A Lei “autoriza o Chefe do Poder Executivo Municipal a tornar a atividade extrativista do babaçu
uma atividade livre no município e dá outras providências.” (grifos
nossos). Essa lei, assim como as outras que também foram propostas e aprovadas
no âmbito da área de atuação do MIQCB, refletem o grau
de organização das mulheres nos Municípios, bem como a sua força política.
As leis formalizaram as
práticas sociais já existentes no Município. Onde o babaçu era livre, ele
manteve-se livre com a aprovação da lei. Enquanto algumas leis garantem o livre
acesso e o uso comum das palmeiras, outras condicionam o acesso e o uso à
autorização dos proprietários das terras, a exemplo da Lei n. 1/2003, no
Município de Paia Norte.
Para a discussão e a
apresentação da lei, as quebradeiras de coco se mobilizaram, utilizando-se de
várias estratégias traçadas, que vão desde a escolha do vereador que apresentará
a proposta à pressão política no dia da votação da lei. Os relatos descrevem a
intensa participação das mulheres no dia da votação do projeto: elas descem da
cacimba dos caminhões, lotando as câmaras municipais com faixas, cestos,
abanos, porretes e machados. Entretanto, nem sempre essas ações se mostram
válidas; às vezes, as mulheres são obrigadas a recuar e aguardar uma nova
oportunidade para a apresentação do projeto. Em várias ocasiões, o projeto foi
reescrito de forma a atender os diversos interesses em jogo.
Ressalta-se que a Lei
do “babaçu livre” representa muito mais do que uma simples regra de direito.
Seu conteúdo expressa uma maneira particular de relacionar-se com a natureza e
as pessoas, constituindo, portanto, uma “nova proposta” de conviver: “to só
assuntando a voz da natureza.” (Enxerto da entrevista de Diocina
Lopes, dona Dió, Lago dos Rodrigues, maio de 2015).
Observa-se que os ideais do “desenvolvimento sustentável” - proposta de
desenvolvimento que dominou as discussões na década de 1990, estão
materialmente presentes nas leis do “babaçu livre”[9].
O profundo conhecimento
da natureza e de seus ciclos faz com que as quebradeiras de coco lutem pela
preservação dos recursos naturais. Ao longo dos tempos, elas deram
demonstrações da ação prática dessa consciência e desse conhecimento, que
rebatem na promoção da biodiversidade e das práticas culturais. A sua luta por
um meio ambiente sadio vincula-se à necessidade de consumir produtos saudáveis,
para garantir sua segurança alimentar.
As leis do “babaçu
livre” trazem em seu conteúdo os ideais de igualdade e de solidariedade,
exercitados, na prática, pelas quebradeiras
de coco. Quando elas saem para “caçar o coco”,
respeitam os diversos costumes, como o de nunca cortar o cacho inteiro do coco,
pois, se assim o fizerem, apenas uma única família ganha; por outro lado,
deixando o coco cair naturalmente, respeitando o seu ciclo vital, qualquer uma
poderá fazê-lo. Quando caem no chão, os cocos podem ser amontoados e, assim,
não são tomados por outras mulheres. Tal prática coaduna-se com a percepção da
necessidade e da capacidade de cada mulher coletar o suficiente para a sua
reprodução. Sabendo que cada quebradeira coleta de acordo com as suas
necessidades, não se verificam disputas entre as mulheres pelo recurso, que é
utilizado de forma aberta e comum pelas diversas famílias que dele dependem. O coco é igual e solidariamente distribuído entre as
quebradeiras de coco e suas famílias, já que, como “árvore mãe”, deve prover a
todos, indistintamente. Aqui, um segundo elemento da ideia de desenvolvimento
sustentável.
As práticas de
preservação, associadas ao uso comum, estão vinculadas a uma compreensão de
Justiça. A “mãe natureza” dispõe da vida
nas suas mais variadas formas, de maneira que as quebradeiras de coco se
organizam para garantir uma distribuição justa e solidária dos recursos. Tais
práticas e concepções estão relacionadas a outras ideias - a segurança e a
soberania alimentar.
Embora as leis do
“babaçu livre” contenham muitos atributos positivos, elas são objeto de
contestações, sobretudo por desconhecimento ou mesmo por ignorância dos
proprietários das terras e dos governos federal e estaduais,
que insistem em adotar estratégias de desenvolvimento extremamente predatórias
e que colocam em risco os diversos grupos sociais na região. As mulheres têm plena consciência de que a
eficácia da lei depende de ações práticas. Sabem que somente a lei não basta:
Nois não podemos deixar no papel. Nois não podemos desleixar, pois
tem que ficar falando e falando e falando, porque se não, acaba, porque aí fica
no papel, não tem um monte de lei lá no Congresso Nacional, que nem ligam
de jeito nenhum, e diz que é lei, lei
como se tá lá só no papel não vai valer não. Entao
a lei do babaçu, do acesso ao babaçu, se
a gente desleixar pra deixar só no papel não vai valer,
a prova tá aí, os arado acabando. (Entrevista com Diocina
Lopes, dona Dió, Lago dos Rodrigues, maio de 2015 -
grifos nossos).
Não é só a lei
em si no papel que garante porque a gente tem que fazer valer essa lei. Fazer
valer a lei é assim: porque a gente não
pode cruzar os braços porque tem uma lei aprovada, porque se você fizer
isso de novo as palmeiras vai tudo pro chão porque o fazendeiro não vai
valorizar essa lei da gente, né!? Então, precisa a
gente ta la
dizendo que não pode derrubar, precisa
você tá lá entregando uma cópia dessa lei pro fazendeiro pra eles também ter
consciência de que não pode tá derrubando, não pode tá queimando, não pode
ta botando veneno aqui no município. (Entrevista com Sebastiana Ferreira Costa Silva, dona Moça, Lago dos Rodrigues,
maio de 2015 -
grifos nossos).
Tal compreensão das
quebradeiras de coco do que seja a lei e o direito são reveladoras da
consciência e do conhecimento adquiridos por essas mulheres em suas lutas
cotidianas. Distante de uma leitura ingênua ou mesmo idealizada do direito,
comum aos estudantes de Direito, elas compreendem que o resultado, isto é, a
eficácia da lei está condicionada a um campo de disputas, que envolve o
“direito em dizer o direito” (BOURDIEU, 1989). Para isso, divulgam a existência
da lei, interpretando-a à sua maneira, que expressa
uma nova convivência entre as pessoas e entre as pessoas e a natureza.
Nesse contexto de
discussão de formas de garantia ao livre acesso e ao uso comum das palmeiras de
babaçu, o recém-criado MIQCB foi surpreendido, em 1992, com a criação de 4 reservas extrativistas no âmbito de atuação do movimento,
que ainda hoje se encontram em processo de criação, à exceção da reserva
extrativista Quilombo do Frechal, por tratar-se de
uma comunidade de remanescentes de quilombo.
3 As Reservas Extrativistas DE BABAÇU
A proposta de Reserva
Extrativista - RESEX -, incorporada ao Sistema Nacional de Unidades de
Conservação - SNUC -, Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, é o resultado das
estratégias desenvolvidas pelos seringueiros da Amazônia, em especial dos
seringueiros do Acre, na luta contra os desmatamentos e a garantia da posse das
árvores de seringa[10]
utilizadas tradicionalmente. Contra os grandes desmatamentos da floresta, os
seringueiros organizavam os “empates”:
Os ‘empates’ são
feitos através de mutirões dos seringueiros. À medida que os seringueiros tomam
conhecimento de que têm companheiros ameaçados pelo desmatamento, de que uma
área está ameaçada pelo desmatamento dos fazendeiros, se reúnem várias
comunidades, principalmente a comunidade afetada, organizam-se assembleias no
meio da mata mesmo e tiram-se lideranças, grupos de resistência que vão se colocar diante das foices e das motosserras de maneira pacífica, mas organizada.
Tentam convencer os peões, que estão a serviço dos fazendeiros, a se retirarem
da área. (GRZYBOWSKI, 1989, p. 38 - grifos nossos)
Em um contexto de luta
dos seringueiros é que as RESEXs são propostas. A
reserva extrativista representou uma alternativa de preservação e econômica da
floresta Amazônica[11];
nesse sentido, aproxima-se da luta das quebradeiras de coco pelo “babaçu
livre”. Tal proposta estava articulada a um conjunto maior de outras políticas,
voltadas às garantias do preço da borracha no mercado nacional e à melhoria das
condições de produção e de comercialização dos produtos oriundos da extração da
borracha.
No início de 1992,
momentos que antecedem a realização da Conferência Mundial do Meio Ambiente, no
Rio de Janeiro (Eco 92), o então presidente Fernando Collor de Mello, em uma
verdadeira estratégia de “marketing
ecológico” para promover o país na arena mundial, cria, na região de atuação do
MIQCB, 4 reservas extrativistas de prevalência do
extrativismo do babaçu, a saber:
Tabela 01: Reservas Extrativistas de
Babaçu
n. de Ordem |
Denominação
da Reserva |
Município-UF |
Extensão
(Há) |
População
estimada |
Decreto |
01 |
Mata Grande |
Imperatriz, Davinópolis e João
Lisboa - MA |
10.450 |
1.500 |
532, de 20/5/92 |
02 |
Ciriaco |
Cidelândia - MA |
7.050 |
1.150 |
534. DE 20/5/92 |
03 |
Quilombo do Frechal |
Mirinzal
MA |
9.542 |
900 |
536, de 20/5/92 |
04 |
Extremo Norte do Tocantins |
Carrasco Bonito e São Sebastião -
TO |
9.280 |
2000 |
535, de 20/5/92 |
Fonte: SHIRAISHI
NETO, Joaquim. Babaçu Livre: conflito entre a legislação extrativista e
práticas camponesas: In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno
de, et. al. (orgs.). Economia do Babaçu: levantamento preliminar de dados. São Luís:
MIQCB e Balaios Typographia, 2001. p.
61
Embora originárias do
processo de luta dos seringueiros, as reservas extrativistas de prevalência de
babaçu criadas pelo governo federal apresentam especificidades relacionadas às
formas de acesso e uso que merecem ser aqui sublinhadas. Enquanto, nas reservas
de seringa, a apropriação da área é comum, e o seu uso é privado por família,
já que cada seringueiro é detentor de uma estrada de seringa (o que se chama de
“colocação”), nas reservas de babaçu a apropriação e o uso são comuns às
famílias, que se utilizam das palmeiras de acordo com suas necessidades e
capacidades.
As reservas
extrativistas de babaçu criadas apresentam ainda uma particularidade que merece
ser destacada: as quebradeiras de coco e suas famílias não moravam na área
delimitada, objeto do decreto. Contudo, o fato de não morarem ali não implicava
que não estivessem realizando a atividade extrativa do babaçu, pois, como já
foi assinalado, a maioria das quebradeiras de coco
está na condição de “sem terra”.
Em pequenos povoados, ao redor das
propriedades/reservas, é que moravam as mulheres e suas famílias, o que gerou,
no início, uma grande tensão e conflito com os técnicos do governo, que não
admitiam uma reserva extrativista sem uma população fixa vivendo na área.
Diante de tal constatação (diga-se: realizada após a criação das reservas), o
processo foi temporariamente suspenso até que novos estudos técnicos e
levantamentos fossem realizados.
À exceção da reserva
extrativista Quilombo do Frechal - que se trata de
uma área de comunidade de remanescentes de quilombo, as demais áreas criadas
pelos decretos ainda hoje não foram consolidadas, estando inconclusos seus
processos administrativos. Enquanto a reserva extrativista do Ciriaco foi parcialmente desapropriada, as reservas da Mata
Grande e do Extremo Norte ainda continuam sendo submetidas a novos e novos
levantamentos.
A demora por parte do
governo federal em concluir os processos permitiu que os proprietários das
terras se organizassem e passassem a utilizar estratégias com objetivo único de
tentar impedir a consolidação das reservas criadas. Os moradores próximos às
áreas revelam que os grandes proprietários passaram a fracionar suas
propriedades de modo a dificultar as ações de desapropriação. Atualmente, a
área da reserva da Mata Grande constitui-se de uma porção de pequenos
proprietários, muito diferente do momento de sua criação. Os moradores relatam
também que, após a edição dos decretos, houve uma intensificação das derrubadas
de palmeiras de babaçu, sem que fosse tomada qualquer medida. Aliás, a reduzida
quantidade de palmeiras foi um dos principais argumentos utilizados pelo
próprio governo federal para propor um projeto de lei ao Congresso, solicitando
a extinção da criação dos decretos que criaram a reserva extrativista da Mata
Grande (MA) e Extremo Norte (TO), que, felizmente, acabou não prosperando.
No início de 1992, as
quebradeiras de coco e lideranças
sindicais ficaram sabendo que o governo havia criado as reservas extrativistas
na região. Em alguns locais, uma visita antecedeu a sua criação. Técnicos do
governo, sobrevoando a região, definiram a localização e os limites das áreas.
As porções de terra consideradas com maior densidade de palmeiras foram as escolhidas para a implantação das unidades de
conservação, importando destacar que essas não estavam no rol de áreas
reivindicadas pela luta do movimento sindical, que se cercavam de outras
prioridades.
Nesse período, a região
ainda era conhecida pelos intensos e violentos conflitos de terras. Apesar de
as áreas das reservas não se encontrarem na agenda de lutas, as organizações
locais e o MIQCB assumiram e passaram a se mobilizar para a sua efetiva
implantação até o momento em que foram alijadas das discussões. Aquelas
organizações que, em algum momento, se manifestaram contrárias às chamadas
“parcerias” propostas pelo ICMBio,
foram, aos poucos, sendo excluídas e não participaram mais das definições
políticas que envolvem as reservas extrativistas.
Todavia, é importante
ressaltar que o contexto atual, que comporta um conjunto de fatores, certamente
tem-se colocado como verdadeiro obstáculo a impedir a consolidação das unidades
de conservação criadas. Não bastassem as dificuldades de compreensão dos
técnicos do governo federal do que seja a atividade extrativa do babaçu, o
próprio ICMBio local vem
conduzindo, de forma temerária, os processos organizativos, que tendem a
inviabilizar as reservas extrativistas criadas em 1992.
A expansão da produção
de ferro-gusa, com as denúncias de trabalho escravo nas carvoarias, fez com que
as indústrias passassem a se interessar pela produção do carvão do coco do
babaçu. O ICMBio, por meio
de seu técnico, levou e incentivou a produção do carvão do coco na área da reserva
extrativista do Ciriaco. Como as indústrias são
muitas e a produção do carvão deve acompanhar essas necessidades, esse fato
levou à coleta indistinta dos cocos, mesmo que os produtores do carvão
alegassem o contrário, que estavam produzindo o carvão a partir dos cocos
maduros e podres.
A coleta não seletiva
do coco para a produção do carvão, sem qualquer cuidado com as garantias de
reprodução das palmeiras, tem contribuído com o processo de devastação dos
babaçuais na região. A despeito das denúncias e dos reclamos, a atividade de
produção do carvão do coco prosperou e perdura no interior da reserva do Ciriaco[12].
Além disso, o ICMBio também vem insistindo para
que as associações das reservas do Ciriaco e da Mata
Grande firmem “parcerias” com a Indústria de Papel e Celulose Suzano, não
obstante todos os impactos gerados negativamente nos modos de vida das
quebradeiras de coco. Várias quebradeiras foram obrigadas a se deslocar para as
“pontas de rua” dos povoados ou para as periferias das cidades, já que as áreas
tradicionalmente utilizadas se transformaram em imensas florestas de eucalipto.
Na reserva Ciriaco, assim como em diversos povoados, as mulheres que se
dedicavam à atividade extrativa do babaçu tiveram que se tornar
assalariadas das empresas terceirizadas, que prestam serviços à indústria[13],
pois acabaram os babaçuais. Em períodos sazonais, elas são contratadas para a
realização de pequenos serviços, como: limpar as áreas, plantar e cuidar das
mudas de eucalipto e outros.
Segundo informações e
relatos, essas ações protagonizadas pela indústria vêm servindo para
desorganizar a vida de centenas de quebradeiras de coco, camponeses,
ribeirinhos e assentados na região. No sentido de tentar “apagar” esses graves
problemas, a indústria adota uma política agressiva de cooptação de técnicos do
governo, das organizações e das lideranças dos movimentos sociais. Com vistas a
realizar seus objetivos, contratou estrategicamente, para a realização das
chamadas “parcerias”, uma técnica, que esteve muito próxima a lideranças das
quebradeiras de coco na época em que foi nomeada para chefiar o Ibama de Imperatriz (MA). Hoje, essa pessoa se utiliza do
capital social construído para aproximar-se das organizações ligadas
aos movimentos das quebradeiras de coco, mediando pequenos projetos e
interesses da indústria Suzano. Na reserva do Ciriaco,
a indústria se comprometeu com a instalação de uma fábrica para o processamento
de óleo do babaçu. Junto às quebradeiras de coco do povoado Petrolina, promoveu
duas ações: assessorou as mulheres na criação da Associação das Quebradeiras de
Coco do Povoado Petrolina; e formalizou um contrato que autoriza as
quebradeiras de coco do povoado a realizar a coleta do coco babaçu em uma área
de sua propriedade. Tais exemplos, ainda que pequenos, demonstram bem essa
estratégia política urdida pela indústria em prol de seus interesses
econômicos.
Estranhamente, a
despeito dos enormes problemas gerados pela indústria de Papel e Celulose
Suzano às maneiras de viver das quebradeiras de coco, as mulheres não conseguem
compreender tal postura do ICMBio.
Elas questionam: “se o papel do ICMBio
era para trabalhar a conservação dos produtos da floresta, eles estão fazendo
aqui justamente o contrário, já que vivem correndo atrás da tal parceria.” Se a
indústria não está diretamente envolvida, impondo obstáculos à consolidação das
reservas criadas, suas ações têm contribuído para esse processo. O
assalariamento das quebradeiras de coco e as formas de cooptação utilizadas
dividem e desmobilizam as lutas e as conquistas do movimento.
Na região de Imperatriz
(MA), as lideranças de quebradeiras de coco se colocam ceticamente ao modelo de
reserva extrativista adotado, já que as dezenas de dispositivos legais, que
disciplinam a sua criação, nas mãos de alguns técnicos, têm mais servido para
afugentar as verdadeiras parceiras. As lideranças se recordam de que apostaram
na proposta, juntamente com outros movimentos, apesar de não terem participado
dos critérios de definição das áreas, criadas unilateral e autoritariamente
pelo governo federal, em 1992.
Atualmente, as
dificuldades de consolidação das reservas podem ser compreendidas, de um lado,
pela total incapacidade do ICMBio
de coordenar o processo de maneira autônoma, sem interferência dos chamados
“parceiros”, que insistem em associar-se ao discurso e às práticas
ecologicamente sustentáveis das quebradeiras de coco - se bem que é difícil acreditar que indústrias de ferro-gusa e de
produção de papel e celulose possam ganhar essa designação: “parceiros”. Por outro
lado, as políticas públicas federais em curso - de incentivo às exportações de
“commodities”, com apoio dos governos
estaduais e locais, têm atravessado as práticas tradicionais e contribuído com
a destruição das maneiras de viver, de fazer e de criar das quebradeiras de
coco.
4 Considerações Finais
Ao final das
entrevistas, fazia um breve questionamento sobre se foi válida a luta até o
momento. Indistintamente, todas as mulheres se manifestaram, considerando que,
apesar de todos os problemas, foram muitos os avanços e os ganhos em relação à
luta pela preservação e pelo acesso ao coco babaçu. Contudo, elas enfatizaram
que a luta não termina e que, agora, estão diante de “inimigos” mais poderosos,
que buscam impedir que o movimento conquiste as suas
principais bandeiras, que se relacionam com a proibição das derrubadas e com as
garantias de acesso e de uso comum das palmeiras.
As quebradeiras de coco
babaçu lembram que, no início, o antagonista era o grande proprietário de terra
e seus jagunços; hoje, não; elas estão diante de grandes produtores e de
poderosas indústrias, ambos conectados com o mercado internacional. A
sofisticação das estratégias utilizadas, que envolve a cooptação de lideranças
do movimento, bem como a intensidade, a velocidade e o tamanho das devastações,
são proporcionais a essa força demonstrada, o que
implica um novo agir e, talvez, novas leis, que possam ser mais abrangentes e
disciplinadoras das ações.
Nesse processo,
observa-se que o critério identidade contribui em maior capacidade de os grupos
sociais exercerem mobilização política para reivindicar direitos. A organização
e a mobilização em torno de direitos constituem-se em importante instrumento
para enfrentar as situações locais, que se evidenciam nos processos de disputa
pelos territórios. A proposta de reserva extrativista, por sua vez, longe de
ser um consenso, apresenta-se como algo a ser discutido pelo movimento. Observa-se que, diante dos problemas internos
(relacionados ao ICMBio) e
externos (a conjuntura regional), o movimento não tem uma postura definida
acerca da reserva extrativista, como alternativa viável ao acesso à terra e aos
recursos naturais.
Contudo, objetivando
fortalecer a sua luta, o movimento vem procurando compartilhar as experiências,
sobretudo aquelas relacionadas à proposição de instrumentos legais direcionados
à preservação, ao acesso e ao uso dos recursos naturais. Junto às “catadoras de
mangaba”, o movimento se envolveu contribuindo na discussão e na elaboração do
projeto de lei que originou a Lei Estadual n. 7.082, de 16 de dezembro de 2010.
Observa-se, também, que as ações e estratégias do movimento vêm servindo como
inspiração a muitos movimentos, como o projeto de lei apresentado pelas “comunidades de fundo de pastos, no Município de Antônio Gonçalves,
na Bahia, que “cria a Lei do Licuri livre ou Lei do Oricuri, sua preservação, extrativismo e comercialização”
(Lei Municipal n. 4/05). No contexto dos “novos movimentos sociais”, o
protagonismo das Quebradeiras de Coco na discussão e na proposição de
instrumentos legais para a preservação, o acesso e o uso dos recursos naturais
é reconhecido pelos mais variados grupos sociais.
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Artigo recebido em: 26/10/2016.
Artigo aceito em: 04/04/2017.
Como citar este
artigo (ABNT):
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Quebradeiras de Coco:
“Babaçu Livre” e Reservas Extrativistas. Revista
Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 14, n. 28, p. ,
jan./abr. 2017. Disponível em: <http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/920>.
Acesso em: dia mês. ano.
[1] Este artigo é resultado de uma
pesquisa realizada a pedido da Actionaid do Brasil e
do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). O Referido
trabalho de pesquisa serviu como subsídio para
a elaboração de uma cartilha, bilíngue, que foi publicada pela Actionaid do Brasil com o título: “Acesso à terra, território e recursos naturais: a luta das
quebradeiras de coco babaçu”.
[2] Sobre o processo de “grilagem” de terras no Maranhão, recomenda-se a leitura: ASSELIN (1982).
[3] Segundo o jurista José Afonso da
Silva, “A Constituição opta, pois, pela
sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar
de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias
opressivas. O pluralismo é uma realidade,
pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de
classes, de grupos sociais, econômicos, culturais e religiosos.” (SILVA, 2007,
p. 143; grifos nossos).
[4] Nas dezenas de dispositivos
legais editados após a Constituição Federal de 1988, identifica-se
vários termos ou expressões utilizadas para se referir a esses grupos sociais
denominados povos e comunidades tradicionais (SHIRAISHI NETO, 2010).
[5] A recente Constituição do
Equador de 2008 edificou um sistema particular de proteção do meio ambiente,
elevando a natureza à condição de “sujeito de direitos”. Essa concepção,
associada ao “buen vivir” (Sumak Kawsay, em kichwa) está
relacionada aos modos de vida e à cosmovisão dos povos indígenas. Sobre os
direitos da natureza no Equador, sugere-se: PACARI (2009) e GUDYNAS (2009). A
Bolívia, que também tem uma nova Constituição (2009), atribuiu direitos à natureza.
[6] Sobre esse processo, que envolve
a construção da identidade quebradeiras de coco, indica-se a leitura: ALMEIDA (1995)
e SHIRAISHI NETO (2006)
[7] O Projeto de Lei n. 747/2003 foi submetido ao professor Luiz Edson Fachin, que, na época,
emitiu um parecer sobre a
constitucionalidade do projeto, tendo sido esse trabalho publicado (FACHIN;
PIANOVSKI, 2006). Em 2007, o Projeto de Lei foi reapresentado (PL n. 231/2007),
apesar de ter sido aprovado por uma comissão
especial, foi novamente arquivado.
[8] No Estado do Tocantins, o
movimento aprovou a Lei n. 1.059, de 14 de agosto de 2008, que “dispõe sobre a proibição da queima, derrubada
e do uso predatório das palmeiras do coco de babaçu e adota outras
providências.” Em 2011, foi aprovada, no
Maranhão, a Lei do n. 9.428, de 2 de agosto, que, além de criar o Dia das
Quebradeiras de Coco no Maranhão,
reconheceu a autoatribuição como critério válido ao reconhecimento das
quebradeiras de coco.
[9] Em contraposição aos modelos de
desenvolvimento hegemônicos, os países andinos, especificamente, a Bolívia
(2009) e o Equador (2008) apresentaram o conceito de “vivir bien” ou “buen vivir”, que estão vinculados à
“cosmovisão dos povos indígenas”. O “babaçu livre”, enquanto uma prática social, aproxima-se ao “vivir bien” ou “buen vivir”, pois contém uma sabedoria, que é produto da
experiência de vida das quebradeiras de coco.
A respeito do “vivir bien”,
sugere-se a leitura: HUANACUMI (2010). Já sobre o “buen vivir: ACOSTA (2012).
[10] Sobre as situações vivenciadas
pelos seringueiros do Acre, que envolve um sistema específico de posse,
recomenda-se a leitura: FACHIN (1990).
[11] A Revista Globo Rural (2015) publicou uma reportagem sobre as
reservas extrativistas sob o título: “Gado ameaça sonho de Chico Mendes:
criadas há 25 anos, reservas extrativistas vivem contradição entre preservação
e avanço dos pastos”; atribuem o avanço da criação de gado à irresponsabilidade
dos próprios moradores, que estão a desobedecer às leis que regulamentam o uso
das unidades de conservação. Para uma discussão não sensacionalista ou impressionista do
gado nas reservas extrativistas, sugere-se: PANTOJA, COSTA e POSTIGO (2009).
[12] Na Reserva Extrativista do Ciriaco ainda persistem outros problemas: o maior deles é o
aumento da criação de gado na área da reserva. Hoje, o presidente da associação
da Reserva Extrativista do Ciriaco, que foi
“vaqueiro” de um dos proprietários das terras, dirige a associação e impõe suas
regras chegando a afirmar que a “reserva vai virar um assentamento”.
[13] Além dos problemas decorrentes
da atuação dos empreendimentos que colocam em risco a maneira de viver das
quebradeiras de coco, em diversos momentos as mulheres entrevistadas
descreveram como são nocivas as políticas sociais do governo federal de caráter
universal, que não se importam com as necessidades dos grupos.